Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa

Dia de São Paulo – discurso de Mário de Andrade

Discurso do diretor Mário de Andrade do recém-criado Departamento de Cultura (1934).

O discurso transcrito a seguir celebra a cidade de São Paulo em seu aniversário, destacando sua história, transformações e papel cultural, social e econômico no Brasil. Mário de Andrade, um dos responsáveis pelo Departamento de Cultura, destaca a essência revolucionária da cidade diante das adversidades, a pluralidade e intercâmbio cultural presentes no cotidiano dos paulistanos. O texto apresenta uma reflexão poética de uma metrópole em constante transformação e sua importância como polo cultural, econômico e social para o país. 

 

"DIA DE SÃO PAULO 

(Discurso de Mario de Andrade, irradiado no  Hora do Brasil, dia 25 de janeiro último. O Departamento Municipal de Cultura foi incumbido do Hora do Brasil, comemorativa do dia da fundação de S. Paulo. A irradiação, alem do discurso do governador da Cidade que demos atrás e do que segue, constou de musicas brasileiras executadas pelo pianista João de Souza Lima, pelo violinista Anselmo Zlatopolsky e pelo Trio São Paulo: Souza Lima - Zlatopolsky  — Calixto Corassa, todos, artistas do Departamento Municipal de Cultura.) 

Não sem justiça foi dada á mais jovem das instituições culturais paulistanas, a glória de celebrar nesta Hora do Brasil, o aniversario duma cidade que vai pelos seus quatrocentos anos de existência. São Paulo é uma cidade velhíssima, porém que idade poderá dar-se a ela?.. Apesar do seu magnífico passado, São Paulo poderá dizer-se apenas recemnascida. 

Corpo de feição violentamente americana, São Paulo viveu quasi sempre do seu presente, porque até éste século foi da própria essência do destino americano viver o minuto que passava. Nisto Manáos, Boston, Santiago e Buenos Aires se equiparavam. Não foi propriamente um engano. uma ‹ilusão americana» essa falta de paciência moral que designou para destino das cidades da America o viver exclusivo do presente. Foi antes uma necessidade violenta de termos chegado tarde por demais numa civilização já feita. E disso veio o enorme desequilibrio. 

O que é a cidade de São Paulo? Quem é São Paulo de Piratininga? Não existe propriamente uma São Paulo, são várias as cidades de emergência que aqui existiram á beira do Anhangabaú. Realmente o vilejo do jesuita nada tem que o relacione ao centro que cingiu o mundo no comércio do café. Nada tem que ver a garoenta cidade jurídica com o centro de irradiação aventureira que foi buscar no sertão, indio e esmeralda. Nada tem que ver finalmente a histórica cidade da independência, com a chaminezona de agora, dependente, industrial, internacional, onde o autoctonismo será simples soberbia desocupada. 

A' medida que as exigências dum presente novo se firmavam, surgia uma diversa civilidade paulistana que se deixava empolgar por uma nova razão-de-ser e só dela cuidava. E assim, quem queira ter um panorama histórico de São Paulo, não conseguirá mais que um rosário de cidades sucessivas que no correr do tempo vieram pousar no mesmo bebedouro do Anhangabaú. Americanamente, São Paulo sempre foi uma cidade incompleta, desprovida daquele tota-lismo civil, que torna os grandes centros da civilização europea, conglomerados polimorfos, donde irradia e para os quais chega sempre, não tal ou qual manifestação especializada da atividade humana, mas o homem em toda a sua inenarravel grandeza. 

Constantemente na America, a psicologia dos caminhos demonstra bem nossas desharmonias. São frequentes entre nós, as cidades cujos caminhos parecem apenas partir, ao passo que em outras os caminhos parecem apenas chegar... 

No princípio da vida paulistana, os caminhos que subiam a serra, partiam de São Vicente e chegavam a Piratininga. Nesse princípio os caminhos apenas chegavam. Em breve, porém, para oeste, para o norte e para o sul, delinearam-se caminhos novos, e êstes partiam, buscando indios, ouro e sertão. Várias vezes porém êstes mesmos caminhos mudaram de movimento. No surto do café eram os caminhos de serra acima que chegavam trazendo o grão sêco. ao passo que os caminhos de leste desceram buscando o mar do mundo. Um desequilibrio improvisado no presente, tornava assim os caminhos desprovidos da sua mais humana finalidade, o intercâmbio, a troca, a generosidade do ir e vir. 

Hoje, aniversariante, com os ouvidos do Brasil á escuta da sua voz, São Paulo escolhe o mais jovem dos seus organismos culturais para anunciar á sua terra natal que ésse desequilibrio está acabando e que isto se dará pelo completamento de cultura do espírito. Agora São Paulo não é mais um mercado comercial predominante como foi um dia, não é mais um reduto de independências nacionais como noutros avatares de seu destino, não é mais uma fonte de advogados apenas, nem um parque industrial apenas, nem muito menos dormita saudosistamente embevecida pela função histórica das bandeiras do passado. São Paulo é sempre uma fonte sim, porém livre de especializações de emergência, fonte, fonte grande apenas, fonte total que pretende ser uma das reservas mais totalizadas do país. 

Disseram-na fria e feia um dia, e São Paulo era feia encafuada nos seus grotões. Mas São Paulo quer-se bonita e higiênica para que o viajante não venha mais encontrar nela, apenas sapo, gripe e solidão. Os grotões transformaram-se em jardins cortados a meio pelas avenidas e pela sombra dos viadutos. Não ha mais sapo. Nos jardins encontrareis recintos fechados com instrutoras, dentistas, educadoras sanitárias dentro. São os parques infantis onde as crianças proletarias se socializam aprendendo nos brinquedos o cooperativismo e a conciencia do homem social. Montado no Anhangabaú verieis um teatro luxuoso que vivia fechado. Mas agora o edificio vibra de vida o dia inteiro. São corais, orquestras, trios, quartetos, são escultores no porão e cenografos do sotão enorme. As tradições ressurgem e os costumes do passado. São crianças tartamudeando em torno duma Nau Catarineta de vime, as melodias que seus pais esqueceram, e nos vieram de novo da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. Mais além uma Discoteca ensaia suas primeiras gravações verdadeiramente científicas do nosso canto popular, funda seu gabinete de fonética experimental, enquanto á sombra dos arquivos uma atividade renovada restaura, traduz, publica manuscritos preciosos. Feito um polvo, as pesquisas sociais tudo abarcam com uma audácia incomparavel que permitirá muito breve á cidade conhecer-se em todas as suas condições, tendências e defei-tos. Doutro lado uma biblioteca brasileira se especializa, na pretensão ambiciosa de tudo saber sobre o Brasil, enquanto as bibliotecas circulantes, as bibliotecas populares dão o rebate da leitura, levando o livro á casa dos homens sem vontade ou experiência, solicitando a colaboração do povo em jornais murais, dando a pena, a tinta, o conselheiro a quem queira escrever. Aqui uma Radio Escola se funda, além uma biblioteca infantil, mais distante um teatro dramático, e os campos de atletismo e as piscinas publicas. 

Todas estas iniciativas não poderão pretender jamais a uma gloriola no presente, sinão uma fecundidade futura. Tudo é novo, é muito esta apenas nascendo. São Paulo é uma cidade dum dia, mas já agora os seus caminhos conjuntamente vão e vêm. O Departamento de Cultura que tudo isto já está fazendo, com toda a sua autonomia municipal, cresce e quer crescer como a flor, como o perfume irradiante doutra criação mais básica, a Universidade de São Paulo. E, sendo municipal, o Departamento de Cultura cresce e quer crescer, esculpido na fôrma do Brasil. Já emissários seus internam-se por Mato Grosso, em busca de conhecimentos ignorados. Já do Rio lhe chegam decoradores e sambistas para as festas de Carnaval, Já do Recife lhe vêm receitas, melodias e instrumentos, de Minas e da Baía especialistas, ao mesmo tempo que da sua atividade partem para divulgação no mundo, a pedido do Ministerio do Exterior, estudos especializados sobre o Brasil. 

A grande cidade, até hoje indestinada em seus tão diferentes destinos, está por fim conciente da sua maravilhosa predestinação. Estuante de vida sempre, mas já agora dotada daquela lentidão essencial que desdenha o egoismo do presente e arma um futuro que a ninguem pertence, São Paulo de Piratininga, a mais primorosa criatura dos Paulistas, renascida e festiva, glorifica o Brasil na volúpia de ser dele uma das fôrças mais perfeitas e uma das fontes mais fecundas."

Esse discurso foi publicado nas edições 19 e 206 da Revista do Arquivo Municipal. 

Pesquisa e organização textual por Raissa Auxiliadora e Wipsley Mesquita e revisão por Beatriz Mayumi