Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa

Por favor, deixem as novelas em paz

Fonte: O Estado de S. Paulo

Correção política deve ser uma norma, mas não se pode cobrar dessa diversão responsabilidade que não lhe é pertinente

José Roberto Sadek

No dia 1º de abril, o professor Renato Janine Ribeiro chamou a atenção, em artigo publicado neste caderno, para o tratamento equivocado que as empregadas domésticas recebem das telenovelas. Para ele, são retratos inadequados, que demonstram preconceitos, longe daqueles que seriam recomendados em uma sociedade justa. Alguns desses mesmos fatos, porém, podem ter outra versão. A correção política no tratamento de categorias profissionais ou de várias minorias é assunto que cada vez mais vem complicando a vida dos autores e sua liberdade de criação. Os comentários do professor parecem ser a ponta de um iceberg que gera cobranças indevidas a filmes, músicas e telenovelas. Embora alguns personagens possam ser lidos com os óculos da militância, podem também ser olhados como partes integrantes da arquitetura dramática de uma história que se conta, nas quais distintos personagens precisam exercer funções diferentes, independentemente de quem sejam.

A entrada dos temas sociais nas telenovelas surgiu praticamente ao mesmo tempo em que o merchandising entrou nas tramas. Talvez uma reação consciente dos autores, que passaram a incluir também no texto dramático temas que lhes eram caros. Trabalhavam causas ligadas à cidadania e, ao mesmo tempo, atraíam mais espectadores. Tanto o merchandising de produtos como os temas sociais são informações extradramáticas, dispensáveis do ponto de vista da história que se conta, mas acabaram bem-aceitos pela audiência. Em meio a beijos e traições, cenas nos falam das vantagens de bancos, lingeries, aparelhos celulares, restaurantes, carros, e, intercalados a elas, outras cenas tratam de aborto, tráfico sexual de menores, migração ilegal, exclusão de portadores de deficiência, falta de órgãos para transplantes.

Historicamente, o público dá importância ao amor, às intrigas e aos desdobramentos que esses dramas poderão ter. O amor é o tema principal das histórias desde a Odisséia. A diversão e o interesse parecem vir daí e não da possibilidade de ascensão social de algum personagem ou do tratamento mais ou menos digno que outros possam ter. Vilões sempre tratam mal os demais personagens, pertençam eles ou não a alguma minoria. Os bonzinhos tratam bem a todos.

O comportamento politicamente correto é necessário e muito cabível nas práticas políticas, no exercício da cidadania, nos confrontos democráticos. Mas as telenovelas não são responsáveis pelo equilíbrio social ou pelas mudanças da sociedade. Se delas esperamos tudo isso é porque talvez nossas práticas políticas tenham sido malsucedidas. Mas nas telenovelas (e demais histórias) há outros componentes a serem considerados, principalmente de natureza dramática. Vejamos o caso de Regina da Glória, a simpatissíma empregada da família Murat em Belíssima. Ela é uma personagem de comédia (peço não confundir comédia com os grosseiros programas de humor da TV), responsável em grande parte pelo sucesso da telenovela. Enquanto muitos personagens se amarguravam com a interminável luta pelo poder e pelas ações da fábrica Belíssima, Regina e outros personagens tratavam tudo com boa dose de humor inteligente, fazendo o contraponto dramático necessário para manter o interesse da audiência. Ela era uma das protagonistas daquela telenovela, participou ativamente de muitos desenvolvimentos, e foi tratada como tal. Era mandada para a cozinha quando dava palpites supostamente impertinentes, o que pode ser entendido como autoritarismo.

LÓGICA CRISTALINA

Por outro lado, tratava-se de um recurso dramático dos autores para valorizar a inquestionável lógica cristalina da personagem que desconcertava seus interlocutores, que atestava um forte contraste entre seu raciocínio claro e o barroco pensamento da família de imigrantes. Mandá-la para a cozinha é um atestado de inteligência dado a ela pelos autores e reconhecido pelos demais personagens que, sem argumentos, não a podiam contestar. Ademais, era sempre mandada para a cozinha com humor, o que era recebido por ela também com humor.

O bordão 'Resina da Glória - Cocina' caiu no agrado dos espectadores e foi repetido incessantemente Brasil afora. Um fenômeno de comunicação, assim como 'Copiou Farinha', de Seu Gomes (América), ou do quase ancestral 'Quem matou Odete Roitman?', de Vale Tudo, que, depois de quase 20 anos, ainda é repetido. Uma telenovela não pode se dar ao luxo de dispensar um trunfo tão grande como este para satisfazer a cobrança politicamente correta. Com o sucesso do personagem, naturalmente os autores se viram obrigados a usar o refrão ainda mais, aumentando a graça das cenas em que ela estava presente. A telenovela mostrou extremo respeito com Regina, como por exemplo, numa situação afetivamente delicada, quando ela se declarou a Narciso, e ele, carinhosamente, explicou já estar noivo de Tais. Ou quando Regina disse querer se casar e foi acolhida imediatamente por Katina. Era uma personagem redonda, com vida, alma, desejos e contradições. Foi interpretada com enorme qualidade técnica por Lívia Falcão que, com seus diretores, soube dosar ironia, descaso, consciência e humor nas medidas adequadas para cada cena. Gozou de status superior a Matilde, a empregada de Bia Falcão, saco de pancadas da patroa. A função de Matilde no drama era bem diferente da função de Regina. Matilde era apenas uma personagem-escada, que servia para mostrar a agressividade de Bia. Regina, como uma das protagonistas da telenovela, atuava e alterava os andamentos dramáticos. Não se pode considerá-la menosprezada porque era mandada para a cozinha quando suas falas eram pertinentemente incômodas. Ela teve posição privilegiada no conjunto de personagens.

As histórias precisam de vilões, de personagens secundários, e até de personagens esquemáticos, cada um com sua tarefa dramática, independentemente de serem empregadas, patroas, prostitutas ou freiras. As duas empregadas de Ana Luisa, mulher do todo-poderoso Antenor em Paraíso Tropical, têm a função clara de mostrar como ela é generosa e ama o marido. Quando falam entre si, dirigem-se aos espectadores com a clara missão dramática de assegurar que a audiência perceba que Ana é enganada pelo marido, que ela não o merece, e que faz papel de boba. Não é tarefa menor, é uma função dramática. As duas empregadas são personagens rasos, assim como é raso Xavier, um dos diretores do grupo comandado por Antenor. Este executivo tem a função de explicitar os desagradáveis comportamentos machistas e preconceituosos. Cabe ao colega a função de deixar bem claro aquele tipo de conduta. Ambos, a dupla de empregadas e o executivo, são personagens sem desenvolvimento, secundários, com explícitas funções dramáticas (até este momento da telenovela), independentemente de suas posições sociais.

O mesmo tipo de cobrança politicamente correta é seguidamente feita quando há personagens homossexuais. Ou aparecem como heróis impecáveis ou seus autores são criticados. Um casal heterossexual pode ter crises, um personagem heterossexual pode ter dúvidas ou ficar deprimido, mas se isso ocorre a um casal homossexual vem a argumentação primária de que o autor é preconceituoso e que afirma (sem de fato afirmar) que a causa é o homossexualismo, como se todos os problemas do mundo viessem da opção sexual do personagem, e que, ridiculamente, a causa dos males do mundo é sua escolha.

Os autores de Paraíso Tropical encontraram uma boa maneira de contornar as críticas dos politicamente corretos: Rodrigo e Tiago formam um casal harmônico, sem grandes crises de convivência, o que permite a Hugo, também homossexual, ter seus problemas. Havendo um casal exemplar, o outro pode ter conflitos. É uma no cravo e outra na ferradura. Rodrigo tem muito mais peso como personagem do que seu parceiro, que é apenas um esquema de personagem que serve apenas para indicar que Rodrigo não esta só. Rodrigo, por seu lado, tem conflitos consideráveis, sem qualquer relação com sua homossexualidade. Ele sabe que o patrão Antenor ilude sua amiga Fabiana, mas goza da confiança do chefe. O personagem está entre contar para a amiga a verdade, ser leal a ela, e desleal ao patrão, ou não contar a ela e manter o emprego. Hugo, este sim com conflitos familiares por sua homossexualidade, desponta como um personagem importante, não por sua opção sexual, mas por associar-se a Taís, que promete ser uma das maiores trambiqueiras das telenovelas.

É bom para os dramas (e para a audiência) ter gente complicada nas tramas, é bom ter gente trapaceira, gente capaz de manobras de qualquer espécie para ser bem-sucedida. Dão mais interesse e graça às tramas, fazem as histórias ficarem mais divertidas. Sem problemas não há boas histórias, independentemente da minoria a que pertencem ou da ideologia que defendem.

As cobranças politicamente corretas, às vezes pertinentes, começam a criar entraves criativos para que se conte boas histórias, pois, se todos os personagens são corretos e se o mundo é tão antisséptico, não haverá problemas, e, sem problemas, as histórias ficam insossas, sem interesse.

MIL ANOS

As Mil e Uma Noites, uma espécie de bisavó das telenovelas e talvez a primeira matriz das histórias divididas em capítulos, é composta por muitas aventuras diferentes, várias delas com escravos, que muitas vezes são açoitados e outras tantas são mortos sumariamente. Não se pode acusar o livro de defender maus-tratos aos escravos. Tampouco se pode esperar que proponha uma revolução contra o islamismo. O livro conta histórias e encanta as pessoas há mais de mil anos. Os escravos lá estão porque fazem parte de histórias passadas no tempo em que ter escravos era normal. Ninguém supervalorizava isso. Em outras histórias do mesmo livro, os escravos são os seres inteligentes que resolvem os problemas ou que salvam a vida de seus senhores, quase como super-heróis.

Na vida real, é muito saudável que se cobre correção política das ações e daqueles que fazem e executam as políticas. Que não se cobre das telenovelas ou das músicas uma responsabilidade que não lhes é pertinente. A elas, basta entreter os espectadores com boas obras, e, quando possível, que levantem algum tema que a prática política não consegue trabalhar. Liberdade de criação também é marca da democracia.

José Roberto Sadek é doutor em Comunicações pela ECA-USP, com tese sobre a relação entre filmes e telenovelas