Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa

Um pastiche que virou sucesso

Fonte: O Estado de S. Paulo

Rejeitada na estréia, A Filha do Regimento ganha montagem bem-humorada no Theatro Municipal

Conheça a ária 'Ah, Mes Amis', com Flórez

João Luiz Sampaio

Um escreveu que 'o tambor, o trombone, o trompete e os címbalos dominam a partitura da forma mais aflitiva para os ouvidos'; outro reclamou da 'vulgaridade das formas e das idéias'; já o compositor e dublê de crítico Hector Berlioz foi categórico: chamou a ópera de 'pastiche', dizendo que nela não havia uma só nova idéia musical. Pois é, críticos às vezes erram. E talvez poucos naquela noite de fevereiro de 1840 imaginariam que A Filha do Regimento se transformaria em uma das mais queridas comédias de Donizetti e que, depois de décadas fora dos palcos, passaria, em pleno início do século 21, por um processo de reavaliação com diversas montagens mundo afora - inclusive em São Paulo, onde abre amanhã a temporada de óperas do Theatro Municipal.

A produção de A Filha do Regimento faz parte do projeto A Comédia na Ópera, que leva ao Municipal ainda este semestre O Chapéu de Palha de Florença, de Nino Rotta, e A Italiana em Argel, de Rossini. 'É uma comédia rasgada, irreverente, em que tudo dá certo', diz o diretor cênico André Heller. 'O primeiro ato se passa durante uma batalha, mas não há um só tiro, ninguém morre, a heroína nem fica louca nem morre', brinca. O enredo é simples. A jovem Marie é abandonada ainda criança e criada em meio a um grupo de soldados. Já crescida, precisa escolher entre eles seu marido - mas conhece o jovem prisioneiro tirolês Tonio. E os dois, claro, se apaixonam. O rapaz resolve virar soldado para estar apto a casar-se com a amada. Mas a chegada da Marquesa de Birkenfeld traz revelações sobre o passado e a origem de Marie, o que vai fazer com que o final feliz dos amantes demore mais para acontecer.

Estreada em 1840, a ópera foi escrita em francês. Donizetti, após alguns fracassos em sua terra natal, a Itália, foi tentar em Paris a sorte - o que significou se encaixar no estilo que chamamos de opera-comique, em que as partes musicais são intercaladas por diálogos falados. No mesmo ano, no entanto, Donizetti prepararia uma versão em italiano para a estréia da ópera no Scala de Milão. Em seguida, a produção viajou por toda a Europa e chegou até aos Estados Unidos - e, a cada cidade, a reação de público e crítica era um pouco melhor. A questão era basicamente a seguinte: aos primeiros ouvintes da ópera parecia que Donizetti estava apenas levando para a França a fórmula que começava a ficar gasta da ópera cômica italiana; à medida que se foi ouvindo a música com mais atenção, no entanto, percebeu-se que a combinação das duas escolas se dá de maneira original, resultando em uma partitura cheia de sutilezas, de tom leve, com momentos de exaltação (como a ária 'Ah, Mes Amis!' do tenor), humor rasgado (a lição de canto no segundo ato) e outros mais envolventes (o dueto entre Marie e Tonio). 'Em muitos aspectos, A Filha do Regimento me parece mais interessante que muitas outras obras de Donizetti como a própria Lucia', diz o maestro José Maria Florêncio, que comanda a Sinfônica Municipal. 'Acho ela melhor tanto em termos de libreto como em termos de instrumentação. E o que para muitos é um problema, a união entre o bel canto italiano e a opera-comique, para mim é um de seus aspectos mais interessantes, ao qual, claro, é preciso prestar atenção.'

Florêncio optou por utilizar a versão francesa da ópera. Não se trata apenas da língua em que se canta, ele explica - na versão italiana, entre outras mudanças, Tonio perde uma de suas árias, ganha um outro dueto com Marie e os diálogos falados ganham acompanhamento musical. A escolha do maestro é justa. É no seu original que a partitura de Donizetti soa mais interessante. E a manutenção dos diálogos falados acaba servindo também à concepção do diretor André Heller-Lopes, que assina a tradução/adaptação dos diálogos. 'Procurei respeitar, claro, o texto original mas com o cuidado de aproximar a ópera dos dias de hoje. Essa ópera nunca foi feita em São Paulo. É quase como uma estréia. E quis recriar para o público paulistano a experiência que o público francês teve em 1840', diz o diretor.

MODERNO OU TRADICIONAL?

'Marie é como Mogli, o menino lobo', diz Heller. 'Foi criada em meio a feras, no caso soldados. É uma heroína que tem pouco a ver com as demais protagonistas belcantistas.' De novo: não há tiros, não há mortes. É daí que vem em parte o humor da história. E é daí que surge também o tom de ironia e brincadeira que marca a concepção cênica de Heller. 'O batalhão em que Marie cresceu é como um exército de Brancaleone', diz. 'Eles ficam vagando pela Europa pregando uma paz que já foi selada', completa.

E como classificar a produção em meio ao debate interminável sobre montagens tradicionais e modernas? 'Já passamos dessa dicotomia', diz Heller. E sua produção mostra como. Os belos cenários abstratos de Renato Theobaldo convivem com os figurinos de época habilmente preparados por Marcelo Marques. 'Gosto desse tipo de mistura. Mais do que ficar entre o moderno e o tradicional, como diretor a atenção deve estar voltada para as necessidades sugeridas pela ópera, pelo enredo, pela música.'

(SERVIÇO)
A Filha do Regimento. Theatro Municipal. Pça. Ramos de Azevedo, s/n.º, 3222-8698. Sáb., 2.ª, 4.ª, 6.ª(27), 20h30; dom. (29), 17 h. R$ 20 a R$ 40 e de R$ 10 a R$ 20 (2.ª). Até 29/4

Temporada de Comédias

PROGRAME-SE PARA RIR: O Theatro Municipal de São Paulo programou para o primeiro semestre três óperas, todas elas grandes comédias. Depois de A Filha do Regimento, o palco será ocupado por O Chapéu de Palha de Florença, ópera do italiano Nino Rota. A produção, assinada pela dupla Marcelo Marchioro (direção cênica) e Jamil Maluf (direção musical) foi um dos grandes sucessos da história recente do teatro - em parte, pelo grande elenco original, formado por cantores como Luciano Botelho, Edna D’Oliveira, Sandro Christopher e Regina Elena Mesquita, que voltam para a remontagem, agora sob o comando do diretor João Malatian e do maestro Henrique Morelenbaum (serão cinco récitas em dias alternados a partir de 19 de maio). Na seqüência, será a vez de A Italiana na Argélia, de Rossini, projeto antigo do maestro de Jamil Maluf, que assina a direção musical e convidou para a direção cênica o ator e diretor Hugo Possolo, dos Parlapatões. No elenco, grandes nomes da ópera cômica brasileira, como o baixo Pepes do Valle, e revelações como a meio-soprano carioca Luisa Francesconi (serão cinco récitas, em dias alternados, a partir do dia 23 de junho).

KORNGOLD: No domingo, às 11 horas, entre as récitas de A Filha do Regimento, o Theatro Municipal promove também concerto em que a Orquestra Experimental de Repertório interpreta obras do compositor austríaco Erich Korngold.