Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa
No lugar das iguarias, pastel e sanduíches
Bruno Paes Manso e Humberto Maia Junior
Por fora, o prédio em estilo eclético, projetado em 1933 pelo escritório do arquiteto Ramos de Azevedo, é um marco imponente do passado de São Paulo. Mas as sólidas paredes do Mercado Municipal escondem um ambiente dinâmico, em pleno processo de transformação.
Os comerciantes tradicionais, que abasteceram com iguarias refinadas gerações de gourmets e donos de restaurantes, reclamam que perderam espaço. Agora, quem faz sucesso são os bares e restaurantes. Vendendo pastel de bacalhau e sanduíche de mortadela, passaram a atrair novos clientes e afastar os antigos.
“Com a queda dos lucros, vendedores de frutas, carne e peixe querem abandonar os negócios para abrir bares e restaurantes”, diz José Carlos Siqueira Lopes, presidente da Associação dos Permissionários do Mercado (Renome). “Isso acabaria com a diversidade do Mercadão.”
Pelo menos 20 permissionários querem trocar de ramo. A maioria prefere montar lanchonetes e restaurantes. Hoje já são 22 lanchonetes no Mercadão, entre os 290 boxes. Nos últimos dois anos, houve pelo menos 15 mudanças - na maioria, de vendedores de frutas que decidiram trocar de ramo. Surgiram docerias e até uma lotérica. “Cansei de jogar fruta fora”, diz Ivan Amaro, que, depois de 15 anos negociando frutas, espera autorização para montar uma pet shop.
As novas gerações de comerciantes têm tentado acompanhar a mudança no perfil dos clientes. É o que aconteceu com o permissionário Luiz Paulo Livitti, que cresceu no Mercadão. O avô, calabrês, começou a vender frutas ainda em 1933. A barraca passou para o pai, que chamou Luiz Paulo para ajudá-lo no trabalho. E assim se passaram mais de três décadas. Mas o negócio perdeu fôlego e ele decidiu abrir uma doceria e sorveteria no lugar. “A madame não espreme mais suco de laranja. Compra pronto. Os supermercados são concorrentes com promoções imbatíveis. Perdemos espaço.”
PÓLO TURÍSTICO
A nova fase começou a se consolidar depois de 2004, quando o Mercadão passou por uma ampla reforma, na administração Marta Suplicy (PT). O objetivo do projeto foi transformar o local em pólo turístico. A principal mudança ocorreu na estrutura interna, com a construção de um mezanino de 2 mil metros quadrados, onde funcionam seis restaurantes e duas lanchonetes. A reforma foi um sucesso de público e atraiu novos clientes. Houve dias em que mais de 100 mil pessoas passaram pelo local.
Mas o sucesso beneficiou principalmente vendedores de comida pronta. “Uma lanchonete rende hoje pelo menos dez vezes mais que uma barraca”, compara Nivaldo Goiano, gerente da Geração Saúde, que vende frutas, e de duas lanchonetes Tigrão. Na média, segundo os permissionários, o faturamento das bancas caiu 15%.
Reforma inacabada dá prejuízo
Prefeitura anula contrato; secretário breca abertura de restaurantes para ‘preservar identidade’ do Mercadão
BRUNO PAES MANSO e HUMBERTO MAIA JUNIOR
Saíram as caixas de frutas que ficavam espalhadas pelo corredor. As fachadas e os 72 vitrais feitos pelo artista russo Conrado Sorgenicht Filho foram restaurados. Um mezanino para bares e restaurantes foi criado. A reforma do Mercado Municipal, iniciada em 2004, deixou o espaço mais clean e atraiu turistas. Mas a baixa qualidade das obras atrapalha o dia-a-dia dos comerciantes.
O empreendimento foi tocado por um consórcio liderado pela Construtora OAS que, procurada pela reportagem, não quis se manifestar. Alegando irregularidades, a Prefeitura anulou o contrato no fim do ano. Falta pagar R$ 12 milhões, pendência a ser resolvida na Justiça. Os permissionários reclamam que fios e instalações elétricas foram malfeitos, canos de esgoto têm vazão insuficiente e faltam bocas-de-lobo em pontos estratégicos, problemas que já causaram perdas de mais de R$ 100 mil para a administração do mercado.
Em 17 de dezembro, o transformador central estourou e causou um apagão que deu enorme prejuízo às vésperas do Natal. O Mercadão tem funcionado à base de dois transformadores, que custam R$ 39 mil mensais.
A atual gestão municipal também brecou o processo de abertura de restaurantes, bares e estabelecimentos do gênero no Mercadão. A reforma original previa, por exemplo, uma padaria no térreo. Foi aberta licitação, ganha pela Padaria e Confeitaria Minha Deusa, que pretendia construir uma adega com 7 mil garrafas de vinho no subsolo. O contrato foi cancelado. “A Prefeitura alegou que a licitação era irregular e amargamos prejuízo de R$ 1,3 milhão”, diz Carlos Tanzillo Junior, sócio da empresa.
O projeto de abertura de outros dois restaurantes, que deveriam funcionar nas torres C e D do Mercadão, além de uma grande choperia, que ficaria na torre A, também faz parte do passado. Os planos foram abandonados pela atual gestão.
Mas o maior imbróglio ocorreu na torre B. Depois da reforma, foram concedidos três andares para o funcionamento de uma bacalhoaria e um centro de eventos, a serem administrados por Leonardo Chiappetta, do tradicional Empório Chiappetta. Chiappetta prefere não falar do episódio. “Quando não nos querem em um lugar, é melhor sair.”
IDENTIDADE PRESERVADA
A arquiteta Nadia Somekh, coordenadora do programa de revitalização do centro na gestão de Marta Suplicy (PT), atribui os problemas justamente ao fato de o projeto original de reforma do Mercadão não ter sido concluído. “Faríamos uma passarela que ligaria o mercado ao Museu da Cidade, que ficaria no Palácio das Indústrias, cujo pátio viraria um grande estacionamento”, afirma. “Mas a idéia acabou sendo abandonada no meio pela administração atual.”
A Prefeitura alega que os planos originais foram revistos porque estavam equivocados. Segundo o secretário da Coordenadoria de Subprefeituras, Andrea Matarazzo, o projeto anterior previa um excesso de restaurantes no mercado e punha em risco sua identidade. “Era um processo que ameaçava transformar o Mercadão numa grande praça de alimentação.”
A Prefeitura afirma que pretende usar recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para revitalizar a área (leia na pág. C4). “O principal é preservar a identidade do Mercadão”, diz Matarazzo.
‘Turistas fotografam, mas não levam’
Donos de boxes tentam se adaptar aos novos freqüentadores, que são mais sofisticados e compram menos
BRUNO PAES MANSO E HUMBERTO MAIA JUNIOR
O avô, Luigi Pugliesi, chegou da Itália para vender melancias por atacado em 1933, quando o Mercado Municipal foi inaugurado. O pai, Eduardo, continuou na casa. Chegava a vender um caminhão de melancias por dia. Há oito meses, José Eduardo, o neto, não agüentou a queda no volume de vendas. Os 30 caminhões mensais não passavam de quatro. Para não fechar, arriscou abrir uma lotérica no antigo boxe. “Os clientes chegam aqui para comer. Não querem mais sair com melancia embaixo do braço”, diz José Eduardo. “Além disso, os caminhões não podem mais estacionar para pegar mercadorias.”
Não é só a reforma que motiva as trocas de ramo. Para os vendedores de frutas e de peixe, os hipermercados tornaram-se um inimigo. Como essas redes oferecem produtos variados, podem fazer promoções imbatíveis para atrair clientes. “Eles colocam uma maçã a preço de custo para lucrar mais com o leite condensado”, explica Nivaldo Goiano, gerente da barraca de fruta Geração Saúde e de duas lanchonetes.
Outras explicações são mais criativas. João Carlos de Freitas, que vende peixes no Mercadão há 44 anos, culpa o desrespeito a antigas tradições. “As pessoas não respeitam mais a tradição e até o papa liberou carne na quinta-feira santa. Também cresceu o total de evangélicos em São Paulo e eles podem consumir carnes no período.”
Ivan Amaro, que quer transformar sua barraca de fruta em uma pet shop, reclama dos turistas que passaram a freqüentar o mercado. “Alguns chegam a tirar fotos das frutas para mostrar aos parentes. Eu pergunto a eles: por que não comprar em vez de mandar fotos?”
No mezanino acima do boxe de Amaro, Horácio Ferreira Gabriel, de 31 anos, a situação é diferente. Dono do Hocca Bar, que vende os tradicionais pastéis de bacalhau e sanduíche de mortadela, ele estima que as vendas aumentaram pelo menos 15% desde o fim da reforma. “Começou a vir um público de classe A que não vinha antes.”
ADAPTAÇÃO
Alguns donos de boxes tradicionais, porém, preferem não se queixar da mudança do perfil dos freqüentadores e se adaptam para atender essa nova clientela. Leonardo Chiappetta, dono do Emporio Chiappetta, que vende azeites, vinhos e enlatados, entre outros produtos, admite a queda no faturamento, mas diz ter feito um trabalho com os funcionários para especializar o atendimento e cativar os turistas.
Além de atrair os clientes, os funcionários contam a história dos produtos. Um vinagre balsâmico, por exemplo, raramente é vendido sem que haja uma explicação de sua origem. Vale até derramar um pouco num pedaço de pão italiano e oferecer para o comprador em potencial. “Hoje é preciso um esforço danado para vender um artigo”, explica. “Mas temos de nos adaptar às mudanças.”
Para manter a tradição da família, que vende queijo há quatro gerações, Roque Bueno Tadeu Peta, conhecido como Roni, conseguiu uma licença do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) para mudar o boxe comercial e fabricar queijos dentro do Mercadão duas vezes por semana. Será um projeto piloto, que pode se espalhar para outros empreendimentos.
“Seria interessante se conseguíssemos transformar o mercado em um grande centro gastronômico, mais dinâmico, onde se produza carnes especiais na hora, com tempero que o cliente quer, onde ele possa experimentar fumos de corda, essas coisas.”
Projeto vai revitalizar a área
O estacionamento é apontado como o principal gargalo atualmente no Mercadão. Segundo os comerciantes, a falta de vagas afasta os clientes que costumavam fazer grandes compras no local. Um novo projeto deve ser tocado ainda nesta gestão para revitalizar a região e ampliar as vagas de estacionamento. O secretário de Coordenação das Subprefeituras, Andrea Matarazzo, afirma que até o fim do ano serão implodidos o Edifício São Vito e o Viaduto Diário Popular. O Palácio das Indústrias deve virar um Museu da Criança, que vai explorar ciência e tecnologia. Uma passagem de nível sobre o Córrego Tamanduateí vai facilitar o acesso a pé entre o museu e o Mercadão. Os clientes do Mercadão poderão usar o amplo estacionamento do antigo Palácio das Indústrias.
Após reformas, público variado dá mais vida ao mercado
Opinião
Luiz Américo Camargo*
Quem reclama que o Mercadão está em crise de identidade, já que os lugares para comer e beber têm, supostamente, feito mais sucesso do que a venda de produtos, deveria ver as coisas de outro ponto de vista. O mercado, na verdade, está mais vivo do que nunca.
Por conta das reformas, que aprofundaram sua vocação de ponto turístico, e da construção de um mezanino com bares e lanchonetes, o local atrai hoje o público mais diversificado de sua história. Jovens que nunca pisaram no centro agora vão ao Mercadão - sim, beber cerveja e comer sanduíches. Mas eles fazem parte da clientela do futuro. Um dia, depois de um pastel, um deles sairá com uma sacola de castanhas, e assim por diante.
Fosse o novo papel tão pernicioso, será que um mercado como o La Boquería, em Barcelona, onde se acha alguns dos melhores produtos da Espanha, já não teria banido suas boas comidas e promovido um levante contra os milhares de estrangeiros que passam por lá só para fazer uma boquinha? Outro ponto: quem vai aos boxes fazer compras chega cedo, em horários diferentes de quem aparece para almoçar ou fazer happy hour. As duas coisas podem coexistir.
As bancas mais badaladas têm esquemas de entrega, para cozinheiros ou clientes especiais - o que significa menos gente indo até lá. As feiras e supermercados melhoraram, e gigantes dos produtos finos, como a Casa Santa Luzia, já não cobram preços tão mais altos. É nesse novo panorama que os varejistas precisam se inserir.
Se é para reclamar de alguém, os comerciantes deveriam voltar suas baterias contra o péssimo esquema de estacionamento e de transporte coletivo, sem falar da segurança. É isso que afasta o consumidor. Sugiro o seguinte: para a selar a paz, vão todos juntos tomar um chope no mezanino.
*Luiz Américo Camargo é editor do caderno Paladar
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