Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa
Magaldi, crítico e aliado do teatro
Beth Néspoli e Mariangela Alves de Lima
Em 1950, o teatro moderno brasileiro encerrava a etapa da primeira infância. Texto, espetáculo e modo de produção haviam se atualizado e refinado como prática e estatuto teórico e, nas duas praças mais importantes do País, a arte do espetáculo estava se tornando tão respeitável quanto a literatura. Sete anos após a espetacular estréia de Vestido de Noiva, o Diário Carioca agrega à sua equipe de redatores, com a atribuição de fazer crítica teatral, um jovem advogado mineiro que até então se exercitara em revistas literárias. Para esse teatro renovado, que escapava tanto ao crítico literário quanto ao repórter da geral, era preciso outro instrumental. Muitos anos depois, na saudação acadêmica de praxe feita aos novos companheiros da Academia Brasileira de Letras, o poeta Lêdo Ivo encerrou com este bonito fecho retórico a súmula biográfica do novo colega: 'Era a hora de escolher a vossa expressão literária. Mas essa já vos tinha escolhido.'
Mineiro de Belo Horizonte, nascido dia 9 de maio de 1927, Sábato Magaldi completa hoje oito décadas de uma existência cuja paixão intelectual dominante é o teatro. O advogado e depois procurador do setor público foi logo se aperfeiçoar no ofício imprevisto fazendo um curso de Estética na Sorbonne. A formação em direito não foi desprezada e permitiu-lhe converter-se, mais tarde, no astuto redator de moções em defesa da liberdade de expressão e da segurança dos artistas durante a ditadura, no aliado que, nas meia horas vagas, ajudava a formular minutas de propostas administrativas em benefício da arte e dos trabalhadores do teatro. Crítico sem complacência dos aspectos éticos e estéticos dos espetáculos, foi sempre um aliado incondicional da produção teatral como um todo. Mágoas com o crítico não impediram que os trabalhadores e artistas o consultassem e o elegessem, ainda que informalmente, como o seu representante nas horas difíceis. Na verdade, não há aspecto da vida institucional do teatro brasileiro, do ensino à legislação, que não tenha sido afetado, de um modo ou de outro, por intervenções diretas ou indiretas desse intelectual de vocação gramsciana que foi o primeiro secretário municipal de Cultura desta cidade.
Da prática jornalística que exerceu a partir de 1952 no jornal O Estado de São Paulo, e, desde 1966, no Jornal da Tarde, provém a maior parte do nosso conhecimento sobre o teatro dos anos 50, 60 e 80 do século passado. Ao aposentar-se da função de crítico de jornal, em 1988, deixou impresso nesse veículo fugaz que é o jornal o testemunho de alguns milhares de espetáculos. Alguns desses críticos estão sendo, depois de filtrados pelo autor, publicados sob a forma de livro. Há ainda entre as críticas, noticiário e ensaios, reflexões importantíssimas que o severo juízo crítico do autor, exercido em causa própria, considera de pouco interesse editorial. Quem pescar nos arquivos, ao acaso, uma coluna informativa, no entanto, verá que a divulgação do espetáculo, anunciada por esse redator de alto calibre, é mais do que uma declaração de boas intenções retransmitida pela coluna. Seções informativas do diário e do Suplemento Cultural de O Estado de São Paulo, escritas ao tempo em que Sábato Magaldi era titular, são densos resumos das plataformas estéticas dos artistas entrevistados. Ter acesso a todos os artigos é um sonho recorrente de quem se dedica a estudar o nosso teatro.
Artigos para jornal precisam trocar em miúdos conhecimentos específicos e é natural, na hora de reeditar, a predileção por livros que foram pensados como tal. Os títulos publicados até hoje são fundamentais para a historiografia do teatro brasileiro, e pode-se dizer que um deles, Panorama do Teatro Brasileiro - publicado pela Difel em 1962 - é a viga-mestra onde se escora a relativa abundância editorial resultante do ensino universitário do teatro. Figura entre suas obras, entre outros, um maravilhoso volume em que podemos aprender muito sobre a evolução da arte de um modo geral, incluindo-se aí o teatro. Editado pela Perspectiva em 1989, o volume O Texto no Teatro reúne estudos dispostos em progressão cronológica de Ésquilo a Heiner Müller. Publicado originalmente no Suplemento Cultural, este conjunto de ensaios é uma prova de que a simplicidade de estilo necessária para introduzir leitores neófitos pode ser alcançada sem que o texto perca a acuidade crítica. Do mesmo modo, as introduções feitas às peças de Nelson Rodrigues, no volume organizado por ele e editado pela Nova Aguilar, mobilizam áreas do conhecimento que ultrapassam o foco monográfico. Leituras brilhantes do léxico, da sintaxe, das especificidades dramáticas de um dramaturgo singular, os estudos são também associações com a história social, com a história da arte, com a psicologia da criação.
Felicitamos o intelectual que é ao mesmo tempo homem de ação, o crítico arguto e inventivo e o erudito generoso, que trama ao acontecimento teatral a ciência de outros campos do saber. Resta louvar e dar parabéns ao professor estimado por atores, diretores, dramaturgos e teóricos que estudaram na Escola de Arte Dramática e na Escola de Comunicações e Artes da USP. É bem provável que seja igualmente estimado pelos alunos para quem lecionou em universidades francesas. Mas, sem dúvida, os alunos brasileiros exigiram muita paciência. Sábato Magaldi faz parte de um grupo de pioneiros reunido por Alfredo Mesquita para aprender, escrever, ensinar e propor a pedagogia do teatro e da crítica brasileiros. Na mochila escolar das suas primeiras turmas universitárias havia um único livro: Panorama do Teatro Brasileiro.
'Não há cura para a doença de ler sobre dramaturgia'
Entrevista
Sábato Magaldi
Sábato Magaldi vai comemorar hoje em família seu aniversário de 80 anos. 'Ele não quis festa', avisa sua mulher, a escritora Edla van Steen. Impedido de ir com freqüência ao teatro - há um ano fraturou o fêmur numa queda em Paris -, segue lendo teoria teatral e prepara um novo livro, para ser lançado pela editora Perspectiva. 'Acho que não há cura para essa doença de ler teatro.'
Soube que o senhor viajou a Paris recentemente. Viu peças?
Fui a convite de uma ex-aluna, para participar da banca de sua defesa de tese, na Sorbonne. Era sobre o teatro da Ariane Mnouchkine, um trabalho muito interessante, fruto de quatro anos de pesquisa.
O senhor viu o último espetáculo da Ariane, Les Éphémères, que vem ao Brasil neste ano?
Não, não pude ver. Eu queria ver, mas fui desaconselhado. Quebrei o fêmur num tombo em Paris, disseram que seria perigoso ficar muito tempo sem mudar de posição.
Viu algum outro espetáculo?
Vi uma montagem de Os Gigantes de Montanha, de Pirandello, no Teatre de la Ville. Fracota. Vi Pirandellos melhores no Brasil.
Na última entrevista do crítico Décio de Almeida Prado ao Estado, ele disse que estava aproveitando o tempo para ler romances como O Corcunda de Notre-Dame, livros que nenhuma relação tinham com o 'dever' de pesquisar ou trabalhar. O senhor tem lido dessa forma?
Leio muito. Recentemente li A Trajetória Poética de Lêdo Ivo, que é um amigo, escrito por Assis Brasil (Educam). Li os livros de Jean-Pierre Ryengart ('Introdução à Análise do Teatro' e 'Ler o Teatro Contemporâneo', editora Martins Fontes) com quem tive contato quando estive na França. Também li uma tese de Fernando Marques (dramaturgo de Brasília, autor de 'Zé', adaptação de 'Woyzeck', de Büchner, editora Perspectiva) sobre o teatro político no Brasil de 1964 a 1979. Gostei muito.
São quase todos livros de teoria teatral?
Nunca se fica curado dessa doença de ler teatro. Tenho lido menos porque estou preparando um livro, com 40 artigos, para ser lançado no próximo ano, pela Perspectiva. Um deles será sobre autores e companhias francesas que foram montados ou passaram pelo Brasil. Foram muitos, sobretudo depois da 2ª Guerra, e essa história se perdeu.
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