Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa
Luto cultural
Greve dos servidores do MinC é resultado da política de um país em que a cultura da cana-de-açúcar é a única levada a sério
Sérgio Augusto
Semana aziaga para a cultura. A Virada na Praça da Sé virou o que não devia e a novela “Roberto Carlos em Ritmo de Censura” teve um desfecho grotesco. Não bastasse, boa parte da cultura vai parar nesta terça-feira. Parar mesmo, cruzar os braços. Não por repulsa ao que fizeram os vândalos da periferia paulistana e o Torquemada capixaba, mas por saturação. Os servidores que cuidam das instituições e manifestações vinculadas ao MinC resolveram entrar em greve por melhores salários e pelo cumprimento do novo plano de carreira prometido pelo governo federal dois anos atrás.
A paralisação, a terceira da categoria nos últimos quatro anos, é por tempo indeterminado. A última, em 2005, durou cem dias. Quarenta e um museus permanecerão fechados, o que dará um certo ar melancólico à abertura da 5ª Semana Nacional de Museus, que o MinC promove amanhã, simultaneamente ao lançamento, pelo ministro Gilberto Gil e o presidente da Funarte, Celso Frateschi, dos editais para este ano dos projetos de teatro, dança, circo, artes visuais e orquestras, patrocinados pela Petrobras.
Visitas ao Paço Imperial, consultas na Biblioteca Nacional e favores da Funarte, só a partir de 22 ou 23 de agosto, se repetido o prazo da greve anterior. Registrar uma obra ou pedir a aprovação de um projeto com base em leis de incentivo fiscal, nada feito. Mas é claro que o prefeito César Maia só deve estar preocupado com a possibilidade de os turistas atraídos pelos Jogos Pan-americanos ficarem sem ver as carruagens de D. Pedro e as telas de Pedro Américo.
Há 10 anos sem reajustes, um bibliotecário iniciante ganha, no máximo, R$ 1.700, com as gratificações. Se reajustado, o salário pularia para R$ 2.900. Um deputado iniciante, que nem precisa de curso superior, ganha, pelo menos, cinco vezes mais por três ou quatro dias de batente. Os gastos com o aumento salarial dos servidores estão previstos no orçamento do MinC, mas o Ministério do Planejamento, temendo um efeito-cascata, ainda não liberou a erva.
Em pior situação estão os funcionários do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Seus superintendentes regionais ganham R$ 1.560. Um ascensorista do Congresso recebe mais. Certamente por isso, 60% dos aprovados em concurso público para o Iphan, em 2005, já procuram outro emprego.
“A luta não é só por salários”, esclarece o diretor da Associação dos Servidores da Fundação Biblioteca Nacional, Rutonio Sant'Anna, “mas pela cultura do País.” E acrescenta: “A impressão que se tem é que o governo não tem interesse algum em preservar o patrimônio cultural público do Brasil.” Haja vista a verba do MinC: R$ 600 milhões, a mesma da Universidade de Uberlândia. Cultura, aqui, só as da cana-de-açúcar e da soja têm sido levadas a sério.
Quando ouvia falar em cultura, Goebbels puxava o revólver. Nossos homens públicos nem o talão de cheques ameaçam puxar. Aliás, só parecem entendê-la como sinônimo de coisas ruins: a “cultura do jeitinho”, a “cultura da impunidade”. Ou como a cornucópia da mãe Joana. Mês passado, o senador Marcelo Crivela (PRB-RJ), pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, tentou em vão estender aos templos religiosos os benefícios da Lei Rouanet, como se cultos evangélicos transmitissem arte e cultura e seus templos fossem, como os católicos, exemplos de arte barroca, colonial e renascentista.
No que diz respeito à cultura patrocinada, Pindorama virou Pendurama. Dureza quase total. A Funarte, para citar um caso exemplar, selecionou projetos universitários de cenografia e figurinos que representarão o Brasil na Quadrienal de Praga, a mais importante do gênero, mas os vencedores terão de pagar as passagens aéreas do próprio bolso, razão pela qual a turma da Unicamp desistiu de participar do evento. Mesmo ciente disso, o ministro do Esporte só sob intensa pressão da classe artística recuou da idéia de tirar 4% dos incentivos fiscais a que a cultura tem direito, para patrocinar eventos esportivos, fartamente aquinhoados por patrocinadores de toda espécie.
O desprezo pela cultura em geral aparece, diariamente, na imprensa, sob os mais variados disfarces. São cada vez mais freqüentes os casos de incúria e depredação do patrimônio histórico: em igrejas, museus, bibliotecas, e demais espaços fechados e ao ar livre. Em março, por exemplo, a polícia carioca descobriu que bandidos haviam afanado 37 dos 76 pingentes de bronze que ornamentam as colunas do foyer do Theatro Municipal do Rio. Ou já foram derretidos ou comprados por algum colecionador inescrupuloso.
A má vontade com os que se esforçam por minorar nossa penúria cultural é outro fenômeno constante e difuso. Recentemente, a escritora Ana Arruda quis doar centenas de livros para a biblioteca gratuita da estação do metrô da Central, no Rio, e levou um “não nos interessa, estamos cheios de livros”. O desdém ao livro é uma das manifestações mais corriqueiras do nosso embrutecimento espiritual. Não me refiro apenas aos que não os lêem, aos que os repelem e aos que os censuram, como aquele cantor que parou na contramão, mas também aos que, impensadamente, os mutilam por motivo fútil. Há dois meses, depois de comprar num sebo os cinco mil livros exigidos pelo cenário da peça Pequenos Crimes Conjugais, sua produtora sugeriu que, para facilitar-lhes o transporte até o Teatro Maison de France, fossem todos cortados ao meio. Horrorizada, Maria Fernanda Cândido, estrela do espetáculo, vetou a idéia, subindo ainda mais no conceito dos que acreditam que beleza não só põe mesa como sabe montar uma biblioteca.
Como cultura sem educação é como um coração sem aorta, e vice-versa, não há como discutir a primeira sem tocar na segunda. O descaso cultural é causa e efeito da calamitosa situação do nosso ensino. Faltam escolas, professores e alunos. A evasão escolar é a norma na faixa entre 15 e 17 anos. Nossos livros didáticos não prestam. Temos 2,4 milhões de analfabetos entre 10 e 29 anos. Metade dos brasileiros com mais de 60 anos não sabe ler. Apenas 1,29% dos alunos das redes estaduais e municipais têm carga horária de 6 horas ou mais. Somente 10 cidades brasileiras possuem rede pública de ensino comparável às dos países desenvolvidos. A maioria dos professores do ensino médio tem formação inadequada, ou seja, não concluíram o curso da disciplina que lecionam. Além de mal formados, ganham uma miséria. Se obtiverem o prometido aumento (R$ 850 por 40 horas de trabalho), ainda assim receberão por mês quase 20 vezes menos que um deputado.
Agora, vocês já sabem porque o Congresso nunca entra em greve.
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