Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa
Eliminar relógios, cancelar as horas
Ignácio de Loyola brandão
Caro prefeito Kassab. Não fui ao jantar da Virada no Theatro Municipal porque estava em Araraquara participando das homenagens ao Zé Celso Martinêz, evento que emocionou o líder do Oficina e a todos nós. Mas segui a Virada, um sucesso. Tomara torne-se tradição e se copie pelo País afora. O povo participou. Viva! Tem tão pouco para ele. Os espetáculos patrocinados pela lei custam todos os olhos da cara. Não é uma incongruência? Agora, te conto o projeto de um amigo meu, freqüentador da CPL, a padaria do bairro.
Há anos Sérgio não dá corda e não troca baterias nos relógios da casa. São seis. Um na cozinha, por exigência da cozinheira, outro na sala de visitas, um no banheiro, um no quarto e dois no corredor, um no início e outro no final. O da cozinha foi pedido pela empregada para regular o tempo dos cozimentos e assados. Quando Sérgio insistiu em parar o relógio, ela se demitiu. Ele não se importou, compra comida pronta, aquece no microondas. O da sala de visitas ele percebeu ser inútil, nunca recebeu uma visita em toda a sua vida. Visita mesmo de alguém amigo, aquele que vem, conversa, toma café, e se vai. As únicas pessoas que entraram naquela sala foram dois recenseadores que não demoraram mais de dez minutos. Sérgio declarou que era ele, sozinho, mais ninguém, ele, um homem sem religião e partido político. Mostrou que era branco, aliás branquelo, porque nunca tomou sol, nunca foi à praia, quando sai à rua usa camisa de manga comprida, tem vergonha de seus braços finos, recebe salário mínimo, não tem sonhos, projetos, não quer viajar, vende suas férias à firma em que trabalha.
Ele conjetura: Se tiro férias, vou ficar em casa. Fazendo o quê? Olhando para as paredes? Vendo esses programas femininos vespertinos, em que se vendem cosméticos, remédios naturais, bugigangas para a casa, máquina de fazer tricô, fornos de pizza, facas amoladíssimas? E as facas Guinza, ainda existem? Programecos em que se aprende a fazer artesanato, colchas de retalhos, enfeites de Páscoa ou para o Dia das Mães? Em que astrólogos falam de horóscopos, mulheres jogam tarô e pseudos psicólogas orientam as mães a educar filhos? Em que especialistas (ou ditos especialistas) dão entrevistas sobre saúde, febre amarela, febre da bexiga, febre amalinada, febre podre, tifo, maleita, palpitação, pressão alta, sangue cortado, sangue sujo, nó no intestino, friagem, unha encravada, enxaqueca? Em que há conselheiros do amor e conciliadores de rusgas familiares? Em que fofoqueiros profissionais comentam sobre a vida dos famosos, meio famosos, nada famosos, anônimos? Imagine, ganhar dinheiro para falar da vida alheia, que mundo é esse? Se há essa gente é porque há pessoas que ligam para ouvir o que essa gente diz, por mais pusilânime que possa ser a situação. Gostava dessa palavra pusilânime, tinha ouvido, no elevador da firma, uma mulher assim se referir a um motoboy atrevido.
Atrevido segundo a mulher que é a chata do quinto andar. Ela não sabe o que o garoto fez, mas não importa, também odeia os motoqueiros que infernizam o trânsito, buzinas, assustam, xingam. Claro, ele foi atropelado por um desses insetos infernais, jogado na calçada, se ralou todo e ainda pararam 20 motoqueiros a xingá-lo, quase foi linchado. Está fazendo um plano para exterminar os motoqueiros. Não sabe como, mas um dos projetos é espelhar pregos pelas avenidas, para estourar pneus e eles estourarem as cabeças sem capacetes. Ou colocar imensos espelhos nas ruas, para que as motos, de repente, pensem que outra vem em sua direção, e percam o controle, se espatifem no chão. Por outro lado, tem dó, é uma meninada que está trabalhando, correndo, precisa fazer entregas, levar mensagens, imaginem as empresas sem eles? Todo mundo grita: chame o motoboy, chame rápido o motoboy, urgente, o mundo vive com pressa, está tudo numa velocidade espantosa.
Por causa dessa velocidade, ele eliminou as horas dentro de sua casa. Acorda quando o sono foi completado, arruma-se e vai para o trabalho e seu corpo está de tal modo habituado, o relógio biológico foi ajustado de tal maneira que ele nunca perdeu hora; aliás, costuma chegar adiantado, é mostrado como exemplo de funcionário padrão. A eliminação das horas tem um sentido para ele, significa eliminar o tempo. Tem pensado muito de que modo, um dia, todos os relógios do mundo poderiam parar. Parar de vez, nunca mais funcionar. Como se fosse possível acontecer algo, como uma enorme radiação que destruísse os mecanismos, mas não os humanos. Tanta coisa estranha se passa hoje em dia, porque não um dissolvedor de mecanismos de relógios? A Terra não está aquecendo? Então?
Um amigo alertou-o. 'Não faça isso! A indústria de relógios é poderosa, cresceu, tomou conta do mundo, não há ninguém sem relógio de bolso, de pulso, de parede, no carro, no celular, no computador, em toda parte, relógios movidos a pilha, bateria, sol, chips, células, há uma indústria imensa que dá emprego a milhões de pessoas. Como viver sem as horas?' Todo mundo pode viver sem as horas, disse ele. Observe alguém que acaba de consultar o relógio. Pergunte: que horas são? A pessoa vai olhar de novo o relógio para responder. Sabe por quê? Porque olhar para o relógio não significa querer saber as horas. Significa procurar verificar se as horas estão ali, se os ponteiros funcionam, empurrando o dia com ele, empurrando a humanidade para os empregos, reuniões de trabalho, passeios, encontros, restaurantes, bares, para o sexo e até para a morte. Pois ele não viu um homem em estado terminal pedir para colocarem um relógio no quarto dele, queria ir descontando as horas, os minutos, os segundos de vida de que dispunha?
Tem mais, disse Sérgio. Criaram mostradores sem numeração, porque as pessoas não precisam mais dos números, pela posição dos ponteiros sabem que hora é. E, se produzirmos mostradores sem ponteiros, mesmo assim todos saberão as horas, porque elas estão encravadas em nosso interior, são como o sangue, são um espírito, dominam o nosso íntimo, somos regidos por elas, seres (seres? digamos elementos) ditatoriais, autoritários, agora você faz isso, depois aquilo, em seguida aquela outra coisa. Não sei ainda como, pensa Sérgio, todo dia, a todo momento (quase disse horas), mas tem de haver um meio de eliminar a contagem do tempo, cancelar a presença do relógio que regulamenta a nossa vida. E, assim, entrar na ausência do tempo, ou no tempo infinito, preparando-nos para a eternidade onde, dizem, não existe a divisão temporal, é um longo espaço sem fim. Meu Deus, horroriza-se Sérgio, o que fazer na eternidade? Como encher o tempo? Paradoxo involuntário, porque se o tempo não existe, para quê preenchê-lo?
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