Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa

Peneco - Estrada

Fonte: O Estado de S. Paulo
Marcelo Rubens Paiva

Quando uma família se propõe a entrar numa lataria sobre quatro rodas movida a combustível fóssil não renovável, o que aquece o planeta, para ficar sentada durante horas, exercendo uma atividade perigosíssima, das que mais matam, isto é, dirigir do 'ponto a', denominado origem, para o 'ponto b', denominado destino, cruzando portais a cada cem quilômetros que cobram em média R$ 7 cada um, faça chuva ou sol, na neblina ou na escuridão, muitas vezes através de uma via sem sinalização, num espaço exíguo e sob constante estresse, Pequenas Neuroses Contemporâneas se manifestam. Não?

1) Se um pessoa da terceira idade com necessidades pra lá de especiais estiver com um Monza 82 prata novinho em folha, que sai da garagem uma vez por ano, justamente, naquele dia, na pista da esquerda de uma estrada a 56 km/h, sendo que é permitido até 120 km/h, você pisca o farol, buzina, cola carro na traseira dele, para marcar pressão, ou pega o primeiro retorno, desiste e vai de avião, prevendo que não será uma viagem fácil?

2) Você está na velocidade máxima permitida. Mas um indivíduo cola na sua traseira. Há espaço apenas para um pensamento pular de um pára-choque ao outro. Ele pisca o farol, instala-se no seu vácuo, gesticula para você sair da frente. Mesmo notando que você ultrapassa um caminhão numa reta em que há um radar a cem metros. Você dá uma pisadinha no freio, só pra deixar a vida mais emocionante?

3) Você passa o caminhão. O sujeito continua infernizando. Tem outro caminhão à frente. O apressadinho vai para a faixa da direita. Vai ultrapassá-lo pela direita, apesar de ser proibido. Você discretamente acelera o seu carro, para encaixotá-lo atrás do caminhão 2?

4) Um carro te fecha, você quase capota, consegue controlar graças a um treinamento de direção defensiva e aos banhos que tem tomado no terreiro. No banco de trás do carro do imprudente, uma criança dá tchauzinhos para você. Você grava bem o rosto dela para fazer um ebó no próximo culto, desejando que, além de herpes, ela tenha dificuldades de crescimento?

5) Quando um guarda manda parar, e você está sem cinto, pára metros adiante e disfarçadamente coloca o cinto, como se limpasse a ombreira com caspas? Quando ele se aproxima, você fala 'bom-dia capitão', 'bom-dia seu guarda', 'bom-dia sua excelência'? Você elogia o par de óculos de aviador que o mesmo porta e pede para experimentar? Pergunta se é verdadeiro ou genérico?

6) Se ele afirmar que você estava acima da velocidade permitida, você diz que não estava, não, que ele estava redondamente enganado, agindo de má-fé e que vai denunciá-lo à Ouvidoria, ou diz que você corre, pois um tsunami atinge a costa?

7) E se o guarda mandar você descer do carro. Você olha para o seu filho e os dois amiguinhos dele, que montaram uma banda de reggae há dias chamada Fumo-Sim-Por-Que-Não, sentados no banco de trás com camisetas com o logo da banda e as cores da Jamaica. Você acelera e foge? Atropela o guarda? Ou sai com as mãos para cima?

8) Para você, todo posto de gasolina está te roubando? Você desce para passar o cartão, já que o mesmo foi mais clonado do que ovelhas? Confia na qualidade do combustível oferecido? Cheira a gasolina? Experimenta? Abre o porta-malas e retira o kit antiadulteração que um amigo da ANP deu no último amigo-secreto?

9) Vocêé daqueles que escutam uma rádio só? Ou mudam de estação obsessivamente, em busca da boa música, sem nunca encontrar o éden? Configurou o seu rádio com as estações preferidas? Não ouve rádio? Canta para você mesmo? Canta Quer um Beque do Bom, Brô, repetidamente, a única música que Fumo-Sim-Por-Que-Não gravou.

10) Teu carro é uma lixeira, ou vocêé daqueles que jogam papéis mundo afora? Você usa perfumes odoríficos para deixar o interior cheiroso? Você tem guias de ruas, de estradas, da programação cultural e de escolas de tiro? Você tem apetrechos, tipo, carregador de celular e porta-copos? Comprou aquele protetor solar de pára-brisa que vendem em farol movimentado? Nem aquele pequeno bloco de anotações que gruda em superfícies não-aderentes por sucção? Nem aquele com canetinha? Nem o globo terrestre?

11) Quando você passa por uma montanha cheia de animais mamíferos pastando, a fêmea do gênero artiodáctilo, ruminante, bovídeo, você aponta e fala, para o seu filho e os amigos da Fumo-Sim-Por-Que-Não: 'Olha a vaquinha!'

12) No pedágio, você diz bom-dia ao mocinho e pergunta quantos quilômetros faltam? Pergunta se está boa a estrada? Você doa a moeda do troco para a caixinha de papelão escrita AAGD, mesmo sabendo que o certo é AACD?

13) E se você instalou o Sem-Parar? Você vai para a sua faixa exclusiva, mas algum espertinho cola em você. Ele vai passar sem pagar. Você freia ou passa bem devagar, tempo suficiente para a cancela arrebentar o pára-brisa do contraventor?

14) Vocêé daqueles que piscam o farol para os carros que vêm na direção contrária, avisando que tem polícia? Até quantos quilômetros você pisca?

15) É daqueles que se irritam quando querem ultrapassá-lo e acendem o pisca-pisca da esquerda, sabendo que não existe uma linha no Código de Trânsito que recomende tal procedimento? E se um caminhão gente fina te dá passagem, você agradece acenando, buzinando ou ligando o pisca? Os três juntos?

16) Se o sol bater no seu vidro lateral, você coloca aquela fronha amarela-cheguei para se proteger, ou relaxa, passa bronzeador e começa a aproveitar as férias já na estrada?

Estréia hoje no Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1.000) a minha peça No Retrovisor, que está há quatro anos em cartaz pelo Brasil, especialmente no Rio, representou o País em festivais na França e em Portugal, vai virar filme, e não chegou a fazer temporada aqui em São Paulo, apesar da cidade ser homenageada (direção de Mauro Mendonça Filho, com Otávio Muller e Marcelo Serrado, luz de Wagner Pinto). É uma das minhas obras mais inspiradas e precisas. Tudo se encaixa: da luz ao cenário, da direção aos atores, das músicas aos improvisos. Ficará só um mês. Detalhe. Foi no Centro Cultural que estreei a peça Feliz Ano Velho. Há 1/4 de século. Volto ao mesmo espaço, para falar do mesmo tema, com outro olhar. Sim, é verdade: um escritor escreve tramas sobre o mesmo trauma sempre.