Secretaria Municipal de Cultura
Sonhos de uma ópera em português
Adriana Pavlova
Houve um tempo em que óperas cantadas em português e com temas inteiramente nacionais não eram artigo raro por aqui. Era uma época em que a capital do País tentava descobrir a sua vocação cultural, embalada por uma monarquia tropical que não queria nem podia fazer feio diante das cortes européias. Assim, há 150 anos, nascia na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro a Imperial Academia de Música & Ópera Nacional, uma companhia de ópera cujo objetivo era promover não só os talentos nacionais do canto lírico como também incentivar uma cena à brasileira. Tudo com o apoio do imperador d. Pedro II.
No pouco tempo em que funcionou, a Imperial Academia fez história. Sob sua égide foi encenada A Noite de São João, a primeira ópera brasileira, que contava com libreto de José de Alencar e música de Elias Álvares Lobo. Também foi nas coxias da cia. que Carlos Gomes atuou como ensaiador de cantores e maestro até ser convidado para escrever duas obras para o grupo - A Noite do Castelo e Joanna de Flandres, seus únicos títulos em português. De 1857 a 1864, ano de seu término, a cia. foi palco de muitas estréias nacionais, sempre com grandes nomes da cena cultural, de Machado de Assis a Joaquim Manuel de Macedo, Quintino Bocayuva a Manuel Antonio de Almeida. De lá para cá, nunca houve uma outra iniciativa que incentivasse da mesma forma uma cena lírica inteiramente nacional.
“Depois dela, uma companhia que se dedicasse estritamente ao repertório nacional não mais existiu”, garante o diretor de óperas e pesquisador André Heller, que se debruça sobre a trajetória da Imperial Academia, tema de sua tese de doutorado no King’s College de Londres. “Existiram óperas nacionais, grandes cantores nacionais, o famoso Quadro Nacional, que ocupou grande parte das temporadas dos teatros municipais de Rio e São Paulo no século passado, mas um grupo patrocinado pelo governo para criar óperas nacionais não houve.”
Apesar do nome, a Imperial Academia de Música & Ópera Nacional surgiu com empurrão de um espanhol, o empresário d. José De Zapata Y Amat, que esteve à frente do projeto desde o início, influenciando também a escolha de repertório. Amat investiu pesado em versões brasileiras das zarzuelas, justamente por causa do sucesso delas na Espanha. Também existiam títulos italianos que, assim como as zarzuelas e as óperas-bufas, ganharam traduções à brasileira de pesos pesados como Machado de Assis ou Joaquim Manuel de Macedo. Bodas de Dona Joaninha foi o nome dado a Las Bodas de Juanita, enquanto Eran Due, Son Tre virou As Colisões do Senhor Ministro. A cia. sobreviveu e fez sucesso apresentando-se em cinco teatros (Ginásio, Lírico Provisório, São Pedro de Alcântara e São Januário, no Centro do Rio, e ainda no Santa Tereza, em Niterói) e baseando seu repertório até 1860 nestas traduções e em outras mais, como as de Norma e La Traviata em português.
A feição ainda mais brasileira do projeto nacional de ópera ganharia fôlego com a estréia de A Noite de São João, em 14 de dezembro de 1860, no Teatro São Pedro. Foi a primeira ópera de autores brasileiros, com assunto tipicamente nacional, com libreto em língua portuguesa cantada em português de que se tem notícia por aqui.
“A temática era brasileira, porque se tratava de uma história de amor em estilo bufo que se passava durante uma noite de São João e por isso mesmo era cheia de referências ao folclore brasileiro”, explica o maestro e pesquisador paulista Marcos Júlio Sergl, cujas teses de mestrado e doutorado versam sobre o tema. “A obra foi tão bem recebida que teve mais duas récitas imediatamente e depois, ao longo do ano seguinte, foi reapresentada em mais duas ocasiões. O sucesso estimulou novos compositores a criar peças inteiramente brasileiras e deu início ao processo de reconhecimento dos autores nacionais. Logo depois dela, Carlos Gomes, que foi o maestro de A Noite de São João, compôs sua primeira ópera. A idéia foi tão bem-sucedida que d. Pedro II passou a apoiar os compositores e até concedeu uma bolsa de estudos para que Gomes estudasse na Europa.”
A partir daí, vários títulos totalmente nacionais - com música e enredo falando daqui - se revezaram nas encenações da Imperial Academia, até o fim do grupo, em meados de 1864. Houve, entre outras, Moema e Paraguassu, de Sangiorgi, com libreto de Bonifácio de Abreu, e Aurora do Ypiranga, com libreto de José Manuel de Macedo. No entanto, na opinião da professora de história da música Cristina Magaldi, da Universidade de Towson, Maryland, nos EUA, esta produção musical tão intensa num curto espaço de tempo não se traduziu exatamente num estilo de ópera brasileira e sim numa ópera à brasileira: “Quando a Ópera Nacional foi fundada, tinha como objetivo a criação de uma escola para produzir ópera no Brasil, o que é bem diferente de uma instituição para produzir ópera brasileira. Para os brasileiros da classe alta no século19, ter a capacidade de produzir óperas com cantores, maquinarias, atores, palco, orquestra e compositores locais (não necessariamente brasileiros) era um privilégio, uma maneira de colocar o Brasil na mesma altura da Europa. De certa forma, isso pode ser visto como um orgulho nacional, mas não como um produto musical ‘brasileiro’ como foi definido pelos nacionalistas no século 20.”
A decadência da Imperial Academia começaria com a sua fusão com uma companhia de ópera italiana, em 1861. Daí para a frente, sem a presença de Amat, a companhia foi definhando até desaparecer. “A trajetória da Ópera Nacional foi bem-sucedida e ela existiu - e resistiu - gloriosamente até cerca de1864, quando os ventos da Guerra do Paraguai começaram a varrer as finanças nacionais, e uma malfadada fusão entre as companhias líricas italiana e nacional condenou os artistas brasileiros a um papel secundário”, afirma Heller. “Depois do quase fracasso da segunda ópera de Gomes, Joanna de Flandres, pouco havia o que fazer. Na noite do dia 24 de outubro de 1863, quando a cortina do teatro se fechou ao final de O Vagabundo, de Henrique Alves de Mesquita, chegava ao fim muito mais do que uma simples ‘noite na ópera’.”
Hoje, são raríssimas as vezes em que é possível assistir a uma ópera composta por um autor brasileiro, com libreto feito aqui. As óperas brasileiras não entram em cartaz, salvo raras exceções. São projetos com o do maestro Jamil Maluf, que à frente do Theatro Municipal de São Paulo conseguiu apresentar ali, em 2005 e 2006, duas produções totalmente nacionais, incluindo uma estréia mundial: Olga, de Jorge Antunes, que teve cinco récitas lotadas, muito embora sua música contemporânea não fosse das mais fáceis. Maluf lembra que ao convidar Antunes para a empreitada, nem o próprio compositor acreditou no convite, já que há anos buscava algum teatro que se dispusesse a encenar a história da líder comunista companheira de Luiz Carlos Prestes.
“É o drama do compositor brasileiro, mas também o do compositor de óperas em todo o mundo, que sofre para ver sua obra em cena”, afirma o maestro. “Infelizmente, na sociedade de consumo, a música erudita só consegue lugar quando apresenta obras consagradas. E esta realidade é ainda mais cruel quando se trata de ópera porque os custos são altíssimos. Não se faz uma montagem hoje no Brasil por menos de R$ 600 mil. Além disso, por falta de costume, há muito preconceito com a ópera brasileira por parte do público.”
Maluf lembra ainda que outro fator complicador para a encenação de óperas brasileiras é a falta de partituras em bom estado. Muitas vezes, uma casa de ópera se interessou por um título, mas diante da falta de material técnico, a tendência é optar por obra estrangeira conhecida. “Há cerca de 30 anos houve um boom mundial das óperas de Rossini porque o governo italiano, incentivado pelo maestro Claudio Abbado, decidiu editar as óperas do compositor. Com o material à disposição, as casas de ópera de todo o mundo começaram a se interessar em encená-las. É isso que falta no Brasil: alguém ou alguma instituição que edite nossas óperas”, diz Maluf, que este ano não apresentará nenhuma ópera brasileira no Municipal por causa de obra no teatro, mas que garante já ter dois títulos nacionais na manga para 2008.
Se Maluf é mais cético diante do panorama operístico nacional, um representante da ala dos compositores, o carioca João Guilherme Ripper (atualmente à frente da Sala Cecília Meireles, no Rio), é bem mais otimista. Autor de duas óperas já encenadas, Domitila e Anjo Negro, e de outra inédita (Augusto Matraga), ele acredita que hoje é possível apostar em óperas menores, que funcionam em palcos mais exíguos e que, portanto, são mais práticas e mais fáceis de sair da partitura. Ripper cita como exemplo Domitila, uma pocket ópera com apenas uma cantora e quatro músicos, que trata das cartas de amor entre d. Pedro I e a Marquesa de Santos, premiada pela Associação Paulista dos Críticos de Artes em 2001.
“Trata-se de uma ópera versátil, que pode ser apresentada em palcos menores, o que facilita a sua circulação”, diz Ripper. Domitila já foi apresentada no Rio, São Paulo, Petrópolis e também em formato de concerto. Se fosse uma ópera maior, estaria restrita a cinco ou seis teatros do País. Hoje espaços como o CCBB do Rio ou de São Paulo são locais que também apresentam óperas, algo que não acontecia antes.” Ripper, sempre de forma otimista, ainda relaciona outra vantagem da ópera brasileira contemporânea em relação às composições do passado. Segundo ele, hoje o compositor de ópera transita mais livremente por diferentes tipos de música, podendo se utilizar deles em suas peças: “Não é mais uma linguagem única. São 400 anos de ópera que se traduzem em cena em diferentes possibilidades, num ecletismo que vai da música serial ao samba. Tudo a serviço da história que se quer contar.” Que venham mais 150 anos.