Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa

Filme expõe autocrítica e mudança

Fonte: Folha de S. Paulo
Crítica/"Santiago"

Em documentário radicalmente pessoal, João Moreira Salles retoma projeto de 1993 sobre mordomo que trabalhou para sua família



PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

"Os rastros de um sonho não são menos reais que os rastros de um passo", escreveu o historiador francês Georges Duby.
Real e imaginário formam um todo indissociável, e, portanto, buscar a verdade em documentos e pistas concretas não basta.
A História com H maiúsculo não seria a mesma depois dessa idéia: ela se fragmentaria e passaria a buscar outros tipos de rastros, incorporando em seu discurso (menos científico, mais poético) a chance do afeto e os detalhes esquecidos, que estavam "fora do campo" dos historiadores tradicionais.
Pois bem: é mais ou menos isso o que acontece em "Santiago", o filme de João Moreira Salles que abriu a edição carioca do Festival É Tudo Verdade e que tem sua primeira exibição em São Paulo hoje.
É mais ou menos essa, também, a trajetória do documentário clássico ao moderno, que esse filme resume de forma radicalmente clara e honesta.
Em 1993, durante cinco dias, João colheu nove horas de entrevistas para fazer um filme sobre Santiago Badariotti Merlo. Seu "personagem" trabalhara durante anos como mordomo da família do cineasta, no belo e frio casarão da zona sul do Rio onde ele e seus três irmãos, Walter, Fernando e Pedro, passaram a infância. "Santiago", o projeto de 1993, por algum motivo nunca se realizou por completo. Talvez já houvesse algo ali que incomodasse João. Um incômodo que, mais de uma década depois, aflorou com sinceridade brutal.
João não se limitou a entrevistar Santiago em seu pequeno apartamento no Leblon; ele também colheu imagens que "ilustrariam" o texto das entrevistas. Sua paixão pelo boxe, por exemplo, seria devidamente demonstrada por imagens de um boxeador exageradamente suado, filmadas em elegante preto-e-branco. As próprias conversas foram filmadas a certa distância, muitas vezes sob rígidas orientações e interrupções que ora vinham do diretor, ora de sua assistente.
"Santiago", o filme de 2007, é feito daquilo que o projeto de 1993 jogaria no lixo, ou seja, o que está fora de campo. A voz do cineasta negando a Santiago os rumos que ele gostaria de ter dado à conversa -não raro de forma ríspida- tem um papel tão ou mais importante que a voz de Santiago. Uma narração em primeira pessoa mistura memórias carregadas de afeto à mais contundente autocrítica que um cineasta poderia fazer aos seus próprios métodos.
Assim, aquele que deveria ter sido o primeiro longa de João Moreira Salles acabou sendo o terceiro (se não contarmos o documentário para a TV "Notícias de uma Guerra Particular", que projetou seu nome, em 1999). Todo o material colhido, um "documento histórico", ficou guardado durante 13 anos antes de se transformar em "Santiago - Reflexões Sobre um Material Bruto", um documento radicalmente pessoal.
O tema central do filme, de fato, é esse: a passagem do tempo, ou melhor, a possibilidade de transformação que existe graças à passagem do tempo (a História, as histórias). Um tema que encontra a melhor metáfora na própria obsessão de Santiago, que passou anos (re)escrevendo de forma muito pessoal a história de famílias e dinastias que, segundo seu ponto de vista, marcaram a humanidade de forma indelével.
Nesses 13 anos entre a filmagem e sua montagem final, João Moreira Salles mudou, bem como sua visão do cinema e do documentário. Só então falar sobre Santiago, mesmo a partir daquele material que tanto o incomodava, se tornou possível mais uma vez.

 

SANTIAGO
Direção:
João Moreira Salles
Produção: Brasil, 2006
Quando: hoje, às 19h, no Cinesesc
Avaliação:ótimo