Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa
E no princípio era o Khaos e a Dicotomia
Novas coreografias de Mauricio de Oliveira e Luis Fernando Bongiovanni guardam sintonia instigante
Helena Katz
O programa recém-estreado pelo Balé da Cidade de São Paulo (BCSP) vem carregado de coincidências que estimulam uma conversa sobre o papel das informações no corpo que dança. As duas coreografias que compõem o espetáculo são assinadas por dois ex-integrantes da companhia, que se tornaram coreógrafos em meio a percursos semelhantes. Mauricio de Oliveira e Luis Fernando Bongiovanni seguiram para a Europa, lá desenvolveram a carreira de intérpretes, e ambos passaram pelo Ballet de Frankfurt na sua época áurea, quando era o laboratório das geniais invenções de William Forsythe. E os movimentos de Forsythe impregnaram-se fortemente neles.
De volta ao Brasil, os dois foram convidados pela direção do Balé da Cidade e trabalharam com música especialmente criada. Mauricio de Oliveira produziu Khaos, com trilha sonora original de Gilberto Assis e cenografia de Bernardo Krasniansky; e Luis Fernando Bongiovanni montou Dicotomia, com trilha sonora original de Mano Bap e cenografia de Marcos Carvalheiro. Além de louvável, o convite aos dois profissionais consolida o importante investimento em talentos brasileiros que vem norteando a direção artística de Mônica Mion. Desta vez, ao apresentar essas duas criações juntas, distendeu ainda mais a relevante contribuição que o Balé da Cidade de SP vem dando à produção contemporânea de dança no Brasil. Porque a sua proposta se transformou em um estudo de caso sobre as formas de contágio que a informação promove no corpo.
No espetáculo que os reúne, as coincidências se prolongam, pois Khaos e Dicotomia guardam sintonias instigantes. Embora a presença de Forsythe ecoe, ela se reduz à questão do vocabulário. Visualmente, os contornos dos passos em cena remetem para aquele quebrar da verticalidade que ficou grifado como assinatura de Forsythe. A contaminação é natural, uma vez que ambos entraram em contato com a mesma informação. E toda informação que chega ao corpo não adere como um anel que se tira e recoloca. A informação, diferenciando-se do anel, se torna corpo, passa a ser corpo. Assim sendo, Luis Fernando Bongiovanni e Mauricio de Oliveira, porque praticaram a mesma informação (no caso, a dança de Forsythe), tendem a manter certa familiaridade no que cada um produz.
Mas há algo menos aparente e igualmente determinante na concepção de dança presente nessas duas criações, e que diz respeito especificamente à natureza do seu vocabulário. Parece haver uma ênfase na 'mostração' de novos passos, restando ao corpo aprendê-los, bem como os modos precisos de executá-los. E a repetição desses passos fica responsável pela construção da competência necessária para a sua realização.
O corpo vai aprendendo à medida que vai fazendo o movimento. Mas quando se sabe que qualquer passo de dança nada mais é do que a materialização de um posicionamento face ao mundo, o fato de repeti-lo representa uma adesão ao que ele vincula - e isso significa que toda escolha de vocabulário traz implicações ideológicas. Passos de dança não são somente desenhos que o corpo faz no espaço: eles sempre expõem qual a sua filiação conceitual.
Esse tipo de entendimento implica deixar de lidar com a invenção vocabular 'de fora para dentro', como resultado de combinações de padrões existentes regidas pela criatividade. No caso dos dois coreógrafos, vai implicar a transformação dos atuais vínculos ao passo-Forsythe, e a seriedade da investigação que vem pautando a carreira de ambos indica tal possibilidade. Quando esse passo for vivido como uma concepção de mundo, e não como forma, promoverá o que ainda falta em Khaos e Dicotomia: uma relação de co-determinação entre os assuntos dos quais tratam e os modos de dizê-los através da dança.
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