Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa
Informativo 43
A presente edição do Informativo do AHM traz dois textos vencedores do Edital de Concurso nº 20/2024 – SMC/AHM - Informativo Arquivo Histórico de São Paulo, sob a perspectiva da construção da memória—seja em arquivos ou na cidade—não é neutra, mas atravessada por dinâmicas de poder que privilegiam determinadas narrativas em detrimento de outras. Ambas as pesquisas ressaltam como certos grupos sociais, especialmente as mulheres, têm suas histórias sistematicamente apagadas ou marginalizadas nos registros históricos e na configuração dos espaços urbanos.
A pesquisa sobre a presença de mulheres nos arquivos históricos evidencia a necessidade de ampliar a representatividade feminina na memória documental. O estudo “Mapeando a presença de mulheres: traMA e o AHM” analisou o Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHM), revelando a predominância de acervos de homens e a escassez de registros produzidos ou atribuídos a mulheres. Além disso, destaca-se a atuação do projeto, que busca mapear, identificar e valorizar conjuntos documentais femininos, contribuindo para uma historiografia mais inclusiva. Essa pesquisa é essencial para compreender como a construção da memória coletiva reflete desigualdades de gênero e para fomentar ações que corrijam essas lacunas.
O artigo "É noite na Rua Augusta: inserção e expulsão da prostituição (1970-2023)" investiga as transformações urbanas da Rua Augusta, em São Paulo, tendo a prostituição feminina como fio condutor dessa história. A pesquisa analisa como a prostituição se consolidou no local a partir dos anos 1970, tornando-se parte fundamental do imaginário da rua, e como, ao longo das décadas, diferentes processos de "revitalização" levaram à sua gradual expulsão. A autora evidencia que, apesar das tentativas de apagamento físico e simbólico, a presença das prostitutas foi essencial na construção da identidade da Augusta, tanto cultural quanto historicamente. Esse estudo é fundamental para compreender não apenas a história da Rua Augusta, mas também os efeitos da especulação imobiliária e da moralização urbana na exclusão de grupos marginalizados. Dessa forma, o artigo reforça a necessidade de reconhecer o papel das prostitutas na configuração da cidade e questionar os impactos das políticas de "revitalização" que buscam apagar essas histórias.
Mapeando a presença de mulheres: traMA e o AHM
Patricia Macêdo
Karla Schütz
Priscila Rosa Martins
O patrimônio documental é parte essencial de uma sociedade. Inserido na noção ampla de patrimônio cultural, ele é composto por documentos manuscritos, livros, fotografias, filmes, e uma variedade de registros informacionais, os quais inscrevem o passado em diferentes suportes e possibilitam a construção da memória coletiva e individual. A preservação dele permite conhecer a história, os costumes, a tradição e a identidade de uma comunidade. Ainda, o acesso a essa documentação remete ao direito que todos os cidadãos têm à memória, à cidadania e à informação.
Segundo Le Goff (2013), o conceito de memória abrange uma série de significados. Para o autor, a memória pode ser vista como um símbolo ou uma representação de momentos significativos do passado, que são perpetuados para a posteridade por determinados grupos, por isso pode ser inscrita em diferentes suportes ao longo do tempo e entendida como a narrativa de eventos históricos, cujo conteúdo é filtrado no decurso dos anos a partir de interesses diversos. Nesse sentido, pode-se compreender que, para o autor, o conceito de memória é multifacetado, abrangendo os diferentes meios pelos quais as pessoas guardam e interpretam o passado, bem como o impacto que essa preservação exerce sobre a sociedade.
Assim, percebemos que a relação entre patrimônio documental e o conceito de memória é complementar. Enquanto o patrimônio documental fornece a “matéria-prima” para a construção das memórias individuais e coletivas, a reflexão sobre o conceito oferece uma compreensão mais profunda dos processos pelos quais essas memórias são formadas, mantidas e transmitidas ao longo das gerações. Analisar ambos é fundamental para conhecer nosso passado e compreender as complexidades da memória histórica e seus impactos.
Ao lançar um olhar cuidadoso para a historiografia, nota-se que as narrativas históricas foram marcadas por relatos que privilegiaram os feitos e histórias de “grandes homens”, deixando de lado as contribuições e experiências de grupos tido como minoritários, entre eles, as mulheres. No cenário arquivístico, a representatividade igualitária de gênero ainda é baixa, uma vez que a maioria dos acervos custodiados são de homens brancos, heterossexuais e pertencentes às classes sociais mais altas da nossa sociedade.
A pesquisadora Perrot (1989), já em 1980, fazia uma crítica à narrativa histórica tradicional, ressaltando sua tendência em favorecer o mundo político, o que acabou por resultar em uma marginalização significativa das mulheres. De acordo com ela, a história, ao privilegiar a cena pública, negligenciou os espaços privados e as contribuições históricas das mulheres. Como Perrot (1989) apontou, essa ausência não se limitou apenas à narrativa, mas também se estendeu à escassez de fontes que abordassem suas vidas e experiências de maneira substancial. Para ela, as mulheres são frequentemente retratadas como “sombras tênues”, um reflexo da predominância de perspectivas masculinas na construção e na interpretação da história.
Entender essa dinâmica é saber que os arquivos têm desempenhado um papel crucial na construção e manutenção do poder. Como afirma Heymann (2020), “silêncio e invisibilidade não são elementos neutros”. A seleção e a organização dos documentos são ferramentas de controle e manipulação da informação. Por trás dessas operações, que dão rosto e corpo aos acervos, estão subjacentes questões como as negociações da memória e a supremacia de desejos e interesses de certos grupos em detrimento de outros.
Parte da relevância dos arquivos passa pela capacidade de salvaguardar registros importantes. Ao estudar a cidade de São Paulo no século XVIII, Dias (1983) destacou que a documentação escrita estava carregada de estereótipos e de uma tradição misógina, revelando certa incapacidade de tratar a participação das mulheres no processo de formação da sociedade brasileira. Nesse sentido: “Estudar papéis sociais femininos dentro de uma conjuntura sócio-econômica bem definida é um primeiro passo no sentido de devolver historicidade a valores culturais eivados de conotações ideológicas, que se têm por imutáveis e fixos” (Dias, 1983, p. 32).
Sendo assim, o presente trabalho visa contribuir para a valorização e fomento à história das mulheres ao mapear e analisar o Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHM). Por meio desta iniciativa, esperamos contribuir para que as vozes e experiências das mulheres sejam reconhecidas e integradas à memória coletiva da sociedade, movimento que pode ter um impacto na promoção da igualdade de gênero e na escrita da história das mulheres. Para alcançar esse objetivo, identificamos a presença de mulheres nos acervos do AHM por meio da análise do Guia de Fundos, Coleções e Itens Documentais (2023), elaborado pela própria instituição, e que serve como instrumento de pesquisa e acesso aos seus acervos.
Importante destacar que esta pesquisa foi elaborada a partir das atividades desenvolvidas no âmbito da traMA (Mapa Colaborativo de Identificação de Mulheres nos Arquivos). Essa iniciativa, por meio de um formulário, busca mapear, identificar e valorizar os conjuntos documentais de mulheres, ampliando a visibilidade e reconhecendo suas contribuições. O projeto também inclui atividades de difusão, contribuindo pragmaticamente para a busca por arquivos mais representativos. Além de promover a inclusão e a diversidade nos acervos arquivísticos, a traMA visa conscientizar a comunidade arquivística sobre a importância da ampliar e recolher acervos de mulheres, fomentando novas políticas arquivísticas voltadas para a representatividade feminina e assegurando que as contribuições das mulheres sejam futuramente preservadas.
Mulheres no AHM
O acervo preservado no AHM compreende o período de 1550 a 2016. Segundo o Guia de Fundos, Coleções e Itens Documentais (2023), o acervo possui “cerca de 2.200 metros lineares de documentos textuais, mais de 5.000 plantas avulsas”, aproximadamente “895.000 imagens do fundo da Prefeitura Municipal de São Paulo, além de 1.000 outras fotografias e álbuns” provenientes de diversos fundos e coleções, incluindo alguns “documentos audiovisuais e tridimensionais”. Apesar dessa riqueza documental, a representatividade feminina ainda é limitada. Entre os 17 fundos e coleções particulares, apenas um é de titular mulher: a coleção particular de Maria Carmen Brandão.
Destaca-se que esse cenário não é incomum, como demonstra Macêdo (2021, p. 35), em relação às informações sobre o gênero dos produtores dos fundos no Arquivo Nacional: “o acervo é composto por cerca de 90% de arquivos de homens”, ou seja, “apenas 32 fundos pessoais custodiados pelo AN têm mulheres como produtoras”. Esse dado ilustra a predominância masculina e reforça a necessidade de iniciativas voltadas à identificação e valorização dos documentos de mulheres.
A coleção particular de Maria Carmen Brandão é composta por documentos de diferentes tipologias, datados de 1914 a 1982: cópias de jornais, revistas e livros, além de correspondência pessoal, currículo e pequeno histórico da sua trajetória artística. A história de doação desse conjunto teve início em 1991, com a tentativa de Carlos A. Gomes Cardim Filho doar parte dos documentos de sua mãe ao Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). No entanto, a oferta foi recusada e foi sugerido que o conjunto fosse encaminhado ao AHM, argumentando que o assunto não se enquadrava na esfera estadual. Assim, em 3 de dezembro de 1991, a coleção foi oficialmente incorporada ao acervo do AHM.
Vale notar que no Guia de Fundos do Arquivo Histórico Municipal dos anos de 2000 e 2007, a coleção é mencionada como “Carlos A. Gomes Cardim”, identificando-o como o doador da coleção, e é listada na seção de “fundos particulares”. Isso leva a refletir sobre como a construção dos instrumentos de pesquisa também pode invisibilizar as mulheres, uma vez que a forma como os dados são apresentados pode reforçar estereótipos e omissões. No caso da coleção Maria Carmen Brandão, que foi inicialmente identificada pelo nome do doador, filho da produtora, percebe-se que essa atribuição pode relegar as contribuições femininas a uma posição secundária ou invisível. À vista disso, faz-se necessário o olhar crítico para o papel das instituições arquivísticas e dos arquivistas nesse cenário, com a finalidade de refletir sobre o impacto que a sua atuação possui na preservação e na valorização da memória documental de mulheres.
Podemos observar, a partir do Quadro 1 a seguir, que a presença de mulheres no AHM se manifesta de diversas formas, inclusive como doadoras. Elas estão vinculadas a diversos fundos, coleções e séries conforme sintetizado:
Quadro 1 - Identificação de mulheres no AHM
n. |
Nome no índice |
Doação |
Ano de doação |
01 |
Coleção Antônio Maria de Albuquerque O’Connell Jersey |
Doada por Maria Elisabeth Queiroz Robin |
1980 |
02 |
Coleção Jorge de Macedo Vieira |
Doada por Amalia Christina Marialva de Macedo Vieira |
Década de 1990 |
03 |
Coleção Sociedade Brasileira de Comédia |
Doada por Janina Landau Schlesinger |
1997 |
04 |
Série Darclée Arena Daumas |
Doada por Darclée |
1996 |
05 |
Série Família Ribeiro Celidônio |
Doada por Dona Alcina Ribeiro Celidônio |
1979 |
06 |
Série Família Teixeira Martins |
Doada por Maria Celestina Teixeira Mendes |
1985 |
07 |
Série Franz Hermsdorf |
Doada por Ana Maria Rufin de Godoy |
2002 |
08 |
Série José Soares de Mattos |
Doada por Vera Alice Winter |
s.d. |
09 |
Série Maria Carlota M. F. Azevedo |
Doada por Vicente Luisi |
1981 |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2024).
A participação das mulheres como organizadoras e doadoras dos arquivos pessoais da família e dos maridos é um padrão que se repete em diversos espaços e locais. Essa prática pode ser vista, inclusive, como uma forma de trabalho invisível e subestimada na esfera doméstica, mas que tem implicações na forma de como a história é lembrada e transmitida.
Em muitas culturas, as mulheres desempenham o papel de guardiãs das memórias familiares, frequentemente, assumindo a responsabilidade pela organização e manutenção de documentos que compõem os arquivos da família, materiais que não apenas registram eventos e relações familiares, mas também capturam as experiências cotidianas e privadas.
Ao mesmo tempo que organizam esses arquivos, as mulheres, por vezes, também são as principais doadoras desses conjuntos documentais para instituições de memória. Ao decidirem preservá-los e doá-los, elas intervêm diretamente nos aspectos da história familiar que serão perpetuados e disponibilizados ao público, além disso, o ato de doação pode ser visto como uma forma de reconhecimento do valor histórico dos registros familiares.
Assim, pode-se afirmar que, ao longo dos anos, de forma indireta, a presença feminina se deu em dois cenários: um que diz respeito ao papel das mulheres enquanto “guardiãs da memória”, as secretárias, assessoras, uma condição subalterna de gênero que as coloca em segundo plano dentro dos arquivos. E, outro, no que se refere a ser mulher, esposa, mãe ou filha, sendo comum suas biografias estarem associadas a homens com quem, em geral, tinham algum tipo de relação pessoal, novamente, reafirmando seu lugar periférico e restrito à esfera privada.
Para finalizar, vale destacar outro dado a partir da análise do Guia: a presença de mulheres como profissionais responsáveis pelo tratamento técnico dos arquivos. Essa realidade, presente em várias instituições, se faz notável aqui também. Esse fato é significativo, pois, conforme afirma Rodrigues et al. (2023), o curso de Arquivologia é majoritariamente frequentado por mulheres e isso ressalta a necessidade de valorizar o trabalho dessas profissionais ao reconhecer sua contribuição para a preservação e organização dos patrimônios documentais.
Considerações finais
Escrever a história das mulheres apresenta desafios únicos devido à escassez numérica de vestígios disponíveis produzidos por elas – arquivos de mulheres – ou que evidenciem a trajetória e a memória delas – arquivos sobre mulheres. A sub-representação de mulheres nos acervos arquivísticos não é apenas uma consequência da forma como os instrumentos de pesquisa são construídos e utilizados, mas um reflexo de uma sociedade que historicamente marginalizou suas contribuições.
A traMA quer ser uma resposta a essa lacuna, buscando mapear, identificar e valorizar os acervos pessoais de mulheres no Brasil. Através de uma abordagem colaborativa, propõe a identificação desses acervos em diversas instituições, organizações e espaços domésticos, promovendo a preservação e a visibilidade das histórias de diferentes mulheres.
Ao examinar o acervo do AHM, observou-se, entre os fundos e coleções particulares, apenas uma titular mulher, reflexo da sub-representação mencionada. Além disso, a análise do Guia revelou que muitas coleções são atribuídas a homens, porém a doação é realizada por mulheres, ou seja, elas também estão presentes, o que leva a pensar sobre como processos de aquisição podem contribuir para perpetuar a invisibilidade feminina ao não incentivarem também o recolhimento de seus acervos. Portanto, acreditamos que uma forma de preservar registros mais representativos seria reestruturar os métodos de aquisição e tratamento de acervos de modo a incluir as vozes e contribuições delas.
É noite na Rua Augusta: inserção e expulsão da prostituição (1970-2023)
Isabela Leite Valentim
RESUMO
Considerada hoje importante espaço da vida noturna dos jovens paulistanos, a Rua Augusta de outros tempos foi um local muito conhecido pela prostituição. Com isso em vista, este artigo tem como objetivo relatar e compreender transformações urbanas da Rua Augusta, principalmente no trecho chamado de Augusta Centro (entre a Av. Paulista e a Rua Martinho Prado), tendo a prostituição feminina como fio condutor dessa história, entendendo a importância das prostitutas e da prostituição em todo o processo urbano e também na formação da memória do lugar.
INTRODUÇÃO
Puta, substantivo feminino: profissão. Mulher que vende o próprio corpo para prática de sexo. Adjetivo: com muita raiva. Pessoa nervosa, estressada, puta da vida, irritada.
Tomado ao pé da letra: mulher que vive da prostituição. Mulher promíscua, desonesta, de vida fácil. Puta, prostituta, meretriz, garota de programa, marafona, mulher da vida, messalina, mulher-dama, cortesã, rapariga… Puta. Independentemente do termo escolhido, ele pode tanto se referir a uma profissão quanto indicar a pior das ofensas às mulheres. (PRADA, 2018)
A prostituição está e sempre esteve inserida na vida da cidade de São Paulo e ainda que discursos e ações moralizadoras tentem negar ou controlar sua existência ela resiste, se reinventa e se recoloca no contexto urbano a depender do momento: “seu desenvolvimento, se é que podemos assim dizer, não acontece de forma gradativa, ou evolutiva, mas sim, subjetiva aos parâmetros sociais aos quais ela se insere” (DEL VALLE, 2020, p .3).
Segundo Feldman (1989), a prostituição faz parte da organização social urbana e se estrutura como qualquer outro serviço na cidade capitalista: seguindo lógicas de mercado. E a Rua Augusta, principalmente o seu Lado Centro - entre a Av. Paulista e a Rua Martinho Prado - está incluída nesse contexto.
Considerada hoje importante espaço da vida noturna dos jovens paulistanos, a Augusta de outros tempos foi um local conhecido pela prostituição, tanto na própria rua, o chamado trottoir, quanto em boates e outros estabelecimentos. Hoje, porém, apesar de ainda haverem alguns estabelecimentos ligados ao universo do sexo ao longo da rua, a prostituição diminuiu significativamente - em 2023 foram identificadas apenas apenas 5 boates de prostituição abertas no Lado Centro, enquanto, segundo Xico Sá (FOLHA DE SÃO PAULO, 02 de junho de 2012) o local já “chegou a ter 80 puteiros, entre boates e saunas.”
As poucas casas de prostituição que ainda existem se concentram principalmente entre as ruas Costa e Marquês de Paranaguá, havendo também algumas boates nas imediações e outros pontos ligados ao universo do sexo, como sex shops1, motéis/ hotéis e saunas gay (imagem 1). O trottoir é praticamente inexistente, havendo alguns pontos também nas imediações da rua.
Mas apesar de tentativas de apagamentos, físicos e narrativos, ao longo do tempo, a prostituição e as prostitutas têm um papel fundamental na construção de um imaginário da rua que perdura até os dias atuais. Ainda, torna-se incontornável a compreensão das dinâmicas atuais e históricas da prostituição na rua para entender como a Augusta chega à conformação que conhecemos hoje e também os processos recentes de expansão imobiliária no local.
AS RUAS AUGUSTA
Segundo o Dicionário de Ruas do Arquivo Histórico de São Paulo (c2023), a urbanização da Augusta “[...] teria ocorrido entre 1890 e 1891 [...]”, quando há também seus primeiros registros em mapa e a Augusta tem sua oficialização em 1903, mas:
As primeiras referências encontradas sobre esta rua datam de 1875. Naquela época ela era apenas uma trilha de terra batida que começava na entrada da Chácara do Capão (altura da Rua D. Antonia de Queiroz) e seguia até o topo do Morro do Caaguaçú, local onde hoje se desenvolve a Avenida Paulista (DICIONÁRIO DE RUAS, c2023, online)
O traçado da Rua Augusta vai se desenvolvendo e assumindo aos poucos sua forma atual. Em 1897 (imagens 2 e 3) a Augusta já tem um trecho em direção aos Jardins aberto, atravessando a Avenida Paulista, e já chega também até a Rua Martinho Prado, no sentido Centro, onde havia o Velódromo de São Paulo2. Por volta de 1915, com o plano de abertura da Rua Nestor Pestana, o Velódromo foi demolido (AZEVEDO, 2018, p. 42) e, posteriormente, a Rua Augusta pôde assumir seu traçado atual - no mapa de 1930 do Sara Brasil (imagem 4), já é possível ver a rua em sua totalidade, como conhecemos hoje.
Neste mesmo momento a prostituição feminina já estava bastante consolidada na cidade de São Paulo - Feldman (1989) aponta para um crescimento da prostituição nos anos 1920 - mas na Augusta ainda não há registros. Até meados dos anos 1940, era uma rua basicamente residencial, com comércio voltado para o abastecimento local e também com presença de alguns colégios de elite - como o Des Oiseaux - e clubes (PISSARDO, 2013). Mas na Rua Florisbela - atual Nestor Pestana - e na Praça da Consolação - hoje Praça Franklin Roosevelt - Feldman (1989) já identifica no período de 1924 a 1939 uma concentração de estabelecimentos de prostituição feminina. Ou seja, por mais que os primeiros indícios de prostituição na Augusta datem dos arredores dos anos 1970, a prostituição nas imediações é bem mais antiga e exercerá influência na posterior inserção e consolidação do mercado do sexo na Augusta.
Mas antes que a prostituição consiga se firmar no local, a rua passa por algumas transformações fundamentais. Seguindo a lógica de metropolização da cidade de São Paulo, a Augusta recebe um forte vetor comercial vindo do Centro, sobretudo na década de 1950, e o que era uma zona basicamente residencial passa a abrigar a maior parte do comércio de luxo da cidade, com boutiques e lojas de decoração, pelo seu fácil acesso aos novos bairros das elites. Nesse movimento, a rua passa também a se consolidar como um pólo cultural e de divertimento, com galerias de arte, lanchonetes e cinemas, sendo frequentada principalmente por jovens em seus carros.
A Augusta vivia seus anos dourados do consumo, mas a aglomeração de pessoas passa a gerar descontentamentos e reclamações por parte da população, principalmente em relação ao trânsito de automóveis e, somado a isso, a partir de meados dos anos 1960 começam a surgir os shoppings center em São Paulo, atraindo a classe média e a elite que frequentavam a Rua Augusta. Os jovens também passam a ir para novos bairros boêmios, como Vila Madalena e Pinheiros e, aos poucos, a rua, principalmente o seu Lado Centro, começa a entrar em “declínio”.
A PROSTITUIÇÃO NA AUGUSTA
Nos anos 70, hotéis, casas de massagem, casas noturnas e motéis passam a se instalar de forma dispersa no espaço da cidade, assim como o "trottoir" das mulheres passa a ocupar as calçadas dos principais eixos viários que se ramificam a partir do centro em todas as direções. Neste momento, a concentração espacial dos estabelecimentos de prostituição, embora se mantenha nas proximidades dos núcleos tradicionais, não constitui mais estrategia dominante na territorialização da prostituição feminina” (FELDMAN, 1989, p. 24).
Este chamado “declínio”, com a desvalorização imobiliária e o abandono das elites e classes médias, cria um cenário propício para a inserção da prostituição no local. A proximidade de vários espaços já consolidados da prostituição em São Paulo - como a Boca do Luxo, Boca do Lixo, a Rua Nestor Pestana e Praça Roosevelt (imagem 5) -, o fato de ser um eixo viário importante (facilitando o trottoir) e a proximidade da clientela de empresários que se estabelecia na Paulista e em hotéis na própria Augusta são alguns dos fatores que fazem com que nos anos 1970 essa rua comece a se tornar um dos pontos mais importantes e reconhecidos da prostituição na cidade. Ainda, vão se estabelecendo na rua também moradias irregulares, cortiços, jogos de azar e comércio ambulante ilegal, formando-se cada vez mais um universo de “contravenções”.
Entretanto, não parece haver grandes ações policiais na Augusta Centro neste momento, indicando uma ideia de clandestinidade relativa: em alguns espaços da cidade se coíbem contravenções e ações consideradas imorais, mas neste primeiro momento na Augusta não parece haver essa vontade. Esse cenário, porém, vai aos poucos se modificando conforme interesses diversos passam a recair sobre a rua.
NEM BAIXA, NEM BAIXO AUGUSTA
Principalmente a partir dos anos 1980, em simultâneo a consolidação da prostituição, começa a emergir na Augusta um movimento artístico e cultural bastante forte, com produção de filmes, literatura, fotografia, muitos com o “submundo” da rua como tema. Além disso, começam a ser inaugurados bares, restaurantes, galerias e espaços culturais e musicais reatraindo jovens para o local e região com um apelo underground.
A escusa noite da Rua Augusta tornava-se cada vez mais popular e as prostitutas faziam parte do atrativo e das diversões daquele local. Era noite na Rua Augusta e agora também era noite no mapa, no mapa da juventude alternativa paulistana. A rua não estava mais no circuito de vários jovens de São Paulo, porém, aos poucos, com esse apelo do underground, do diferente e do curioso, a situação muda. Começa-se a consolidar uma ideia de “charme decadente” da Rua Augusta (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020, s/ pg.).
Já dos anos 1990 para os anos 2000 se fortalece cada vez mais uma espécie de fetiche da juventude em conviver com a ilegalidade e o submundo da Augusta em meio a bairros ricos, o que “fazia da pseudo ousadia uma experiência protegida e segura” (YOUSSEF, 2019, p. 58). O poder público também, nesse mesmo movimento de reaproximação da Augusta, já começa a centrar algumas ações de “revitalização” e “segurança” no local.
A baixa Augusta, dos números mais baixos da rua por sua proximidade com o centro, mas também o lugar da “baixaria”, da prostituição, do submundo, vai se transformando no chamado Baixo Augusta. Aos olhos do poder público, do mercado e de uma grande parcela dos paulistanos a baixa Augusta não era interessante, pelo contrário, se tratava de um lugar em constante degradação, mas o Baixo Augusta, por outro lado, se torna cada vez mais valorizado.
Baladas se estabelecem em meio às casas de prostituição, o trottoir começa a ser substituído por filas de jovens bebendo e esperando para entrar em festas, mas o Baixo Augusta, considerado responsável por consolidar um novo olhar sobre a rua, muito difundido pela mídia, atrái também o mercado imobiliário e outros interesses.
Principalmente em meados dos anos 2010 começam a surgir diversos empreendimentos na Augusta. Se antes as baladas substituíram as boates, hoje os grandes empreendimentos cada vez mais substituem essas baladas. Hoje, tanto a baixa quanto o Baixo Augusta tentam resistir em meio às pressões imobiliárias e a rua experimenta diariamente demolições e apagamentos.
Mas apesar de tentativas moralizadoras de apagamentos físicos e simbólicos, é inegável que as prostitutas são parte constituinte da Augusta, tanto espacialmente quanto na formação da memória do local. Não é possível dissociar a história da Rua da história da prostituição, que ainda hoje resiste e se recoloca nesse espaço.
Prostitutas sempre estão em áreas a serem revitalizadas. Quando vem a revitalização são as primeiras a serem expulsas (LEITE, 2006)
Referências
- Mapeando a presença de mulheres: traMA e o AHM
ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Guia de Fundos, Coleções e Itens Documentais. São Paulo: Arquivo Histórico Municipal, 2023.
DIAS, M. O. L. S. Mulheres sem história. Revista de História, São Paulo, v. 114, p. 31-45, 1983.
HEYMANN, L. A invisibilidade dos arquivos femininos (Entrevista feita por Cristiane D’Avila). Café História – história feita com cliques. mar. 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-com-luciana-heymann/. Acesso em: 5 jul. 2024.
LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
MACÊDO, P. L. P. Histórias individuais, fenômenos sociais: pesquisa no Arquivo Nacional aponta importância no recolhimento de acervos pessoais. Revista Comunicação e Memória, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 2021.
PERROT, M. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 18, p. 09-18, 1989.
RODRIGUES, G. S. et al. A representação feminina no Congresso Nacional de Arquivologia (CNA). Páginas a&b: arquivos e bibliotecas, Porto, n. 20, 2023.
- É noite na Rua Augusta: inserção e expulsão da prostituição (1970-2023)
YOUSSEF, Alê. Baixo Augusta: a cidade é nossa. Belo Horizonte: Editora Letramento, 144 p., 2019.
AZEVEDO, Carlos Roberto de. Praça Roosevelt: ocupação e transformação do espaço público (1967 - 2018). Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018.
DEL VALLE, Ricardo Mingareli. Entre a Belle Époque, Zonas e Trottoir: as transformações citadinas e as rupturas arquitetônicas com a prostituição paulistana - história e contemporaneidade (1860-2020). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2022.
FELDMAN, Sarah. Segregações espaciais urbanas: a territorialização da prostituição feminina em São Paulo. 1989. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. Acesso em: 02 abr. 2023.
HELENE, Diana. Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: A segregação urbana da prostituição em Campinas. 1ª Edição. Annablume Editora, 2022.
LEITE, Gabriela. Daspu, uma grife surpreendente. [Entrevista concedida a] Natalia Viana. Caros Amigos, São Paulo, ano IX, n. 106, p. 28 - 31, jan. 2006.
PISSARDO, Felipe Melo. A rua apropriada: um estudo sobre as transformações e usos urbanos na Rua Augusta (São Paulo, 1891-2012). Dissertação (Mestrado em Projeto, Espaço e Cultura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
PRADA, Monique. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018. (Coleção Baderna) E-book Kindle.
PASINI, Eliane. “Corpos em evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2000.
ROLNIK, Raquel. São Paulo: o planejamento da desigualdade. São Paulo: Fósforo Editora, 120 p., 2022. E-book Kindle.
RUA Augusta. Dicionário de Ruas, Acervo Histórico Municipal de São Paulo, c2023. Disponível em: https://dicionarioderuas.prefeitura.sp.gov.br/historia-da-rua/rua-augusta Acesso em 10 de julho de 2024.
PINTÃO, Daniele. Rua Augusta vive dias de silêncio e tristeza com gatos pingados de copo na mão. Folha de São Paulo, 14 de julho de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ ilustrada/2020/07/rua-augusta-vive-dias-de-silencio-com-gatos-pingados-de-copo-na-mao.shtml Acesso em: julho de 2024.
SÁ, Xico. Prostituição está quase extinta na rua Augusta. Folha de São Paulo Blog, 02 de junho de 2012. Disponível em: https://xicosa.blogfolha.uol.com.br/2012/06/02/prostituicao-esta-quase-extinta-na-rua-augusta/comment-page-1/ Acesso em: março de 2023.
SÃO Paulo antigo: plantas da cidade. Informativo do Arquivo Histórico Municipal, São Paulo, ano 4, n. 20, setembro/ outubro de 2008. Disponível em: http://www.arquiamigos.org.br/info/info20/index.html Acesso em: julho de 2024.
HAND TALK
Clique neste componente para ter acesso as configurações do plugin Hand Talk