Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa

Informativo 44

Cartografias do Esquecimento: Como as Obras e Demolições Moldaram a Memória Paulistana

Esta edição do Informativo do Arquivo Histórico Municipal apresenta três textos selecionados pelo Edital de Concurso nº 20/2024 – SMC/AHM, reunidos sob os eixos temático “Urbanidades e Memória Paulistana” e “Edificações e Arquiteturas Paulistanas”. As produções evidenciam como a memória da cidade é um campo de disputas, no qual determinados lugares, histórias e sujeitos ganham visibilidade enquanto outros permanecem à margem. Longe de ser um processo neutro, a construção da memória urbana está diretamente ligada às relações de poder, às políticas de valorização do espaço e às formas de pertencimento que se desenham nas vivências cotidianas dos moradores da cidade. 

Em “Hotel Central: uma metonímia de uma São Paulo em constante transformação”, o autor Matheus Pereira Cardoso explora a trajetória do Hotel Central como símbolo das sucessivas transformações urbanas, sociais e econômicas de São Paulo desde o início do século XX. Localizado na Avenida São João, o edifício é analisado como uma metonímia da cidade – ou seja, uma parte que representa o todo – permitindo compreender as dinâmicas de especulação imobiliária, imigração, políticas públicas e urbanismo que moldaram o centro paulistano. O edifício revela os paradoxos da metrópole: a coexistência de grande demanda habitacional com o abandono de patrimônios históricos. 

No artigo “Estacione aqui: Cine Piratininga e a luta pelo direito de entrar nem que seja pela ruína”, o coletivo Brás de Todo o Mundo lança um olhar sensível sobre o histórico Cine Piratininga e sua trajetória de decadência, invisibilização e resistência no bairro do Brás. A partir da vivência comunitária e de práticas de memória afetiva, o texto constrói um contraponto à ausência de reconhecimento oficial do espaço como patrimônio, evidenciando como as ruínas do cinema seguem sendo ativadas por moradores e visitantes como marcos de identidade e pertencimento. Ao narrar as práticas culturais em torno do prédio abandonado, o artigo revela a potência das memórias subterrâneas e das estratégias de ressignificação frente à especulação e ao esquecimento institucionalizado. 

Já em “Centro atravessado: mapeamento e indagações sobre os impactos da construção da Ligação Leste-Oeste do Município de São Paulo”, a autora Dominique Aires realiza um cuidadoso estudo cartográfico e documental para evidenciar os efeitos das obras viárias implantadas na segunda metade do século XX sobre os bairros centrais da capital. Ao sobrepor mapas históricos e dados de demolições, o artigo revela os traçados urbanos como vetores de exclusão, destacando as perdas materiais e simbólicas impostas a territórios marcados por forte presença operária, migrante e popular. Assim como no texto anterior, este trabalho reafirma o eixo “Urbanidades e Memória Paulistana” como espaço de reflexão crítica sobre os modos de se viver, lembrar e disputar a cidade de São Paulo. 

 

 

 

“Hotel Central: uma metonímia de uma São Paulo em constante transformação”

Matheus Pereira Cardoso

Transitar pela Avenida São João na segunda década do século XXI se apresenta, aos olhos atentos e interessados em uma Arqueologia da Paisagem, como uma oportunidade de constatação da existência de múltiplos fragmentos históricos representados pelas edificações lá situadas. Esses fragmentos, por sua vez, são resultantes de sucessivas ações de descarte dos produtos imobiliários da cidade, que levaram à comparação por Benedito Lima de Toledo, em seu célebre “São Paulo. Três cidades em um século”, a um palimpsesto, pergaminho em que uma escrita era raspada para dar lugar a uma nova.  

Nessa cidade incessantemente autofágica, que já tornou, em menos de 50 anos, o número de cidades de Toledo obsoleto, é notável a resiliência do antigo Hotel Central, situado no atual número 288 da referida avenida, com a qual estabelece uma relação simbiótica que possibilita compreendê-las como metonímias das transformações de São Paulo no início do século XX. 

O crescimento intenso da atividade cafeeira a partir da segunda metade do século XIX levou à constituição de uma grande quantidade de capitais acumulados à procura de multiplicação com vista à obtenção de lucro, o que fez com que o espaço urbano se tornasse uma importante plataforma para esse objetivo. O declínio do processo escravista também contribuiu para esse processo, já que, como afirma Brito: 

“Dentro desse contexto de substituição da mão-de-obra escrava, foram definidas, portanto, as políticas que permitiriam a transferência da capitalização da renda para a propriedade territorial, sendo, para isso, necessário estabelecer estratégias para que a garantia dos empréstimos que deveriam permitir a expansão da produção passasse da propriedade do escravo para a da terra” (BRITO, 2008, p.32). 

A matriz financeira desse processo resultou no interessante fenômeno de cooperação entre o capital local – robustecido pelo crescimento das lavouras de café – e o capital estrangeiro, possibilitada pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação, como os telégrafos e o navio a vapor. Essa parceria internacional se manifestou, principalmente, na multiplicação de bancos estrangeiros atuantes em São Paulo e nos investimentos em infraestrutura e na construção civil. 

Nesse sentido, passariam a desenvolver suas atividades por aqui – sobretudo na rua XV de Novembro – bancos como o Banca Francese e Italiana per l’America Del Sud (1918) e o alemão Brasilianische Bank Für Deutschland (1908-1910) (ambos ostentando estilos históricos de seus países e cujos projetos pertencem ao acervo do AHSP). Na infraestrutura, começariam a operar, nesse período, empresas como a São Paulo Railway Co. (1868) e a The San Paulo Gas Co. Ltda. (1872). 

A fim de alimentar o processo especulativo vigente, no campo da arquitetura, diversas edificações seriam erigidas tendo o tijolo como o material predominante em um momento em que ganhava destaque a estética associada aos estilos históricos europeus do Ecletismo, em substituição às tradicionais edificações baixas de largas paredes de taipa de pilão e telhados cerâmicos com beirais. 

O processo imigratório muito contribuiu para esse desenvolvimento ao trazer mestres habituados a lidar com esse novo padrão em seu solo-natal. Não à toa, os italianos corresponderiam, em 1913, a 80% da mão de obra empregada na construção civil (BONDI, 2010, p.26). 

No campo do urbanismo, seriam realizadas diversas intervenções tendo como norte aquelas realizadas nas grandes capitais europeias - sobretudo na Paris haussmanniana – todas com a participação estatal, seja na execução direta, seja na regulamentação da produção através de leis. As obras de saneamento, alinhamento e embelezamento dos espaços da cidade ganhariam força a partir da Proclamação da República em 1889, quando os ideais positivistas se difundiriam mais amplamente e a estrutura de Estado ficaria sob controle do Partido Republicano Paulista- PRP, a principal sigla de representação da elite cafeeira em ascensão.  

Em São Paulo, a mais importante dessas obras seria a grande intervenção realizada no Vale do Anhangabaú a partir do relatório conciliatório do francês Bouvard – um especialista internacional -, dentro da qual se inseriram tanto o alargamento da Avenida São João quanto a construção do Hotel Central. 

Iniciadas em 1906 a partir da Indicação nº147 do vereador Silva Telles, as discussões a respeito dos destinos do Vale colocaram em confronto direto a Diretoria de Obras e Viação municipal (liderada por Victor da Silva Freire, notável urbanista e detentor de uma visão de conjunto) e os proprietários privados (sobretudo o Conde Eduardo de Prates), que vislumbravam a elevação do valor de seus terrenos ao redor do local após as obras. Tendo ambas as partes apresentado projetos conflitantes, foi emitido um convite a Bouvard para que elaborasse um parecer, o qual resultou, entre outros pontos, na proposição de um ajardinamento completo do Vale do Anhangabaú, mantendo a propriedade dos particulares. O relatório propunha ainda o alargamento da antiga Rua de São João, que passaria a ter 30m de largura.  

Publicado em 1912, o relatório propiciou o fim dos conflitos e deu início às ações de concretização. No mesmo ano, seria aprovada a lei nº1.596, a qual aprovava a planta de alargamento da via (armazenada no AHSP) e estabelecia exigências, como a obrigatoriedade de as futuras edificações apresentarem, no mínimo, três andares. Tal fato evidencia, como afirma Cardoso, que: 

“Todas essas intervenções não seriam feitas à revelia da lei. Na realidade, seriam criadas legislações norteadoras da produção imobiliária da cidade, com destaque para o Código de Posturas de 1886, a Lei nº 38 de 1893, o Código Sanitário de 1894, a Lei 1.596 de 1912 e a Lei 1.901 de 1915” (CARDOSO, 2023, p.16). 

Em 1915, seria protocolada a primeira versão do projeto do Hotel Central, realizada sob encomenda de Antônio de Pádua Salles. Empresário e Secretário de Agricultura, Comércio, Viação e Obras Públicas do governo de Albuquerque Lins, chama atenção a participação de Salles em um governo que, juntamente com as esferas municipal e federal, concedeu incentivos, sobretudo fiscais (lei municipal nº1.079/1908 e 1.353/1910, estadual nº1.193-A e federal nº2.210), para estimular o estabelecimento de grandes empresas hoteleiras na cidade, como demonstrado no Informativo nº33 do Arquivo Histórico Municipal. 

Apresentado pelo Escriptorio Technico F. P. Ramos de Azevedo & Cia., o mais importante da cidade, o projeto foi elaborado por Domiziano Rossi, genovês imigrado e professor da Escola Politécnica.  

Imagem 1: Fachadas do projeto de 1915. Fonte: Arquivo Histórico Municipal Washington Luís.

Previa-se uma edificação em alvenaria de tijolos e concreto armado com reforços metálicos, cujas fachadas seriam ricamente ornamentadas. Com rígido esquema de simetria, a entrada do hotel seria centralizada e se daria através de uma porta igualmente decorada. Além disso, no térreo, foram dispostas duas lojas, cada uma com duas portas. O prédio teria um térreo, uma sobreloja e outros dois andares. Arrematando a edificação, uma platibanda com elementos decorativos (CARDOSO, 2023, p.61).    

Entretanto, esse projeto esbarrou na legislação vigente. Demonstrando o rígido controle da produção da cidade, foram emitidos pareceres (que acompanham as peças gráficas) pelos técnicos municipais da época (Celso Vianna, Arthur Saboya e Victor Freire), os quais apontavam o descumprimento da lei nº1.596 e a necessidade de complementação de informações: 

Arthur Saboya: “[...] Os pés-direitos devem ser postos de accordo com o padrão conforme já decidiu o Sr. Prefeito. A Lei 1.596 exige que na rua de São João os prédios terão no mínimo 3 andares. O presente projeto indica o seguinte: pavimento térreo, sobreloja e dois andares acima da sobreloja, parece-me que o intuito da lei é exigir os 3 andares acima da sobreloja e não incluindo esta [sic]” (CARDOSO, 2023, p.29). 

Celso Vianna: “Falta o corte longitudinal em 3 vias, onde se vejam os pés-direitos exigidos pelo padrão”. (CARDOSO, 2023, p.29). 

Victor Freire: “Aguardar a promulgação da lei ora em discussão na Câmara, a qual dá solução à dúvida”. (CARDOSO, 2023, p.31). 

A lei referida por Freire (Lei nº1.901) foi promulgada naquele mesmo ano e alterava itens da Lei nº1.596. Em relação aos pés-direitos: 

“Art. 2º O pé direito dos pavimentos nas construcções, na cidade de S. Paulo, não póde ser inferior a tres metros e setenta centimetros, (3m,70), salvo nas sobre-lojas, que póde ser de dois metros e setenta centimetros, (2m,70). 

Parágrafo Único. Os porões que tiverem dois metros e cincoenta centimetros (2m,50) de pé direito, e receberem luz directa, poderão servir de habitação durante o dia [sic]”. (CARDOSO, 2023, p.31). 

Imagem 2: Pareceres dos técnicos municipais. Fonte: Arquivo Histórico Municipal Washington Luís

A fim de adequar o projeto às exigências apontadas, o Escriptorio Technico F. P. Ramos de Azevedo & Cia. apresentou, em 1916, um projeto complementar (elevações, cortes e planta de ático – pertencentes ao acervo do AHSP) assinado por Ricardo Severo, um dos sócios da empresa.   

Imagem 3: Projeto complementar de 1916 - Elevações. Fonte: Arquivo Histórico Municipal Washington Luís.

Imagem 4: Projeto complementar de 1916 – Corte longitudinal. Fonte: Arquivo Histórico Municipal Washington Luís

Imagem 5: Projeto complementar de 1916 – Planta do ático. Fonte: Arquivo Histórico Municipal Washington Luís.

O projeto acrescentava um ático amansardado e um arremate decorativo metálico, características que mantém até hoje. O corte possibilita visualizar a configuração do vazio central, bem como a estrutura do telhado. A entrega desses documentos supriu as demandas apresentadas pela municipalidade e, em 23 de março de 1916, Victor Freire se manifestaria, como demonstram as páginas do processo pertencentes ao AHSP, com um: “Lavre-se alvará”. 

O Hotel Central foi inaugurado em 1918. Dois anos depois, foi concluída a obra do seu vizinho, o Hotel Britânia, encomendado pelo mesmo cliente e realizado em profunda harmonia com o primeiro. O projeto deste também pertence ao acervo do AHSP (SANTOS, 2017, p.254). Em 1922, coroando as intervenções do Vale do Anhangabaú, foi entregue o outro vizinho: o prédio dos Correios & Telégrafos. Todas as três edificações foram projetadas pelo mesmo escritório de arquitetura. 

Uma vez concluída, a edificação abrigou uma pensão pertencente a Juvenal Alves. Em 1934, a empresa foi transferida para José Bonini, iniciando um período em que a história da edificação se manteve associada a uma família de origem italiana. Em 1958, o clã adquiriu o imóvel (cuja posse manteria até 2007) e transferiu a empresa de hotelaria para a família Sapata, de origem portuguesa, que atuou até 1996 (CARDOSO, 2023, p.94).  

Aqui, novamente, o caráter metonímico do Hotel Central se manifesta ao permitir entender transformações ocorridas em São Paulo nos âmbitos social e econômico. A atuação de ambas as famílias no hotel por décadas revela a inserção de grupos imigrantes - nesse caso, italianos e portugueses - na sociedade paulistana por meio do desenvolvimento de atividades comerciais, revelando uma história comum a diversas outras famílias com as mesmas origens. 

Em 2006, a família Bonini encomendou um projeto de restauro para as fachadas da edificação à Casatual Incorporações e Construções. Entretanto, no ano seguinte, o prédio foi vendido a um comerciante angolano, que incorporou as propostas de restauro e encomendou do escritório Brasil Arquitetura S/C Ltda. um projeto de transformação do prédio em um hotel-boutique, que contaria com o acréscimo de um restaurante-mirante no topo. Devido a questões pessoais do proprietário, o imóvel entrou em uma longa disputa judicial, fazendo com que o projeto fosse abandonado. Em 2008, o prédio foi ocupado por um movimento de luta por moradia (CARDOSO, 2023, p.144). 

Mais uma vez, o edifício-metonímia possibilita compreender lógicas que extrapolam os seus limites, adentrando questões candentes em uma escala metropolitana.  Como diversas outras edificações históricas, ele aguarda a concretização de políticas efetivas de conservação e de reuso, ao mesmo tempo em que enfrenta problemas judiciais volumosos que se estendem por anos. A ocupação por movimentos de moradia revela ainda uma grande contradição urbana da metrópole paulistana: a existência de uma imensa demanda por moradia em paralelo a um grande número de edificações ociosas, muitas delas, de valor histórico.  

Sendo assim, são necessárias ações efetivas para a recuperação dessas edificações, como a maior agilidade no processo de licenciamento, a constituição de linhas de crédito específicas para obras de restauro e retrofit, o estabelecimento de políticas de conservação dos espaços urbanos e o desenvolvimento de programas habitacionais robustos e capazes de suprir o déficit em consonância com a preservação do patrimônio edificado.  

 

 

Estacione aqui: Cine Piratininga e a luta pelo direito de entrar nem que seja pela ruína 

Coletivo Brás de Todo o Mundo

Nos diálogos entre cinema como acontecimento e patrimônio como fenômeno, este artigo carrega consigo dores e amores a respeito da memória do Cine Piratininga, icônica sala de exibição localizada no bairro do Brás, na cidade de São Paulo. Se o cinema foi e é legitimado enquanto fonte histórica (Ferro,1981; Morettin, 2003) o que poderiam ser seus espaços de exibição? Ou melhor, as ruínas de seus espaços, não reconhecidas oficialmente como patrimônio ou abarcadas por qualquer iniciativa de preservação? 

Na capacidade do cinema de propor conexões com outros mundos e em sua intencionalidade, desde a invenção do cinematógrafo no século XIX, expressa pelo seu nascimento junto a revolução industrial e habilidade em propor imagens em movimento (Xavier, 2017), a ampliação do cinema-filme para o cinema-lugar, que envolve a experiência em si, está vinculada principalmente aos processos de urbanização da cidade. Pautados pelos desafios da temporalidade, o próprio envelhecimento dos ‘cinemas de rua’ é lugar comum em discussões a respeito da memória e patrimônio - ou melhor - do descaso em relação a formas de preservação das salas de cinema que as conduzem rumo ao desaparecimento. 

Do clássico Cinema Paradiso (1988) de Tornatore e da forma pela qual o personagem Toto é hipnotizado pelo trabalho de projeção até a série Salas de Sonhos, de 20201, dirigida por Paulo Wences Duarte com depoimentos sobre icônicas salas de cinema de São Paulo, diferentes momentos e fontes transmitem o fascínio e as aproximações entre cinema, esquecimento e ruína. Diferentes iniciativas de preservação destes espaços2, ao reconhecer e experienciar essas relações também materializam em suas próprias formas de atuar e diferentes modos de viver cinema. Até mesmo uma série de trabalhos acadêmicos abordam questões relacionadas ao Cine Piratininga3, revelando seu alcance entre pesquisadores. Em eras de streaming, com a experiência cinematográfica compartilhada em termos de sociabilidade e vivência coletiva cada vez mais escassa, ainda que a ida ao cinema seja considerada o maior hábito cultural dos paulistanos (61% de acordo com pesquisa realizada em 2018. JLeiva, 2018) e apresente o maior interesse de frequência4, os cinemas localizados em shopping ainda compõem a maioria das formas de acesso a estes equipamentos, ressaltando a importância da preservação de atividades e memória em si, dos cinemas de rua. 

Com o desafio de refletir aspectos dos cinemas de rua, contribuindo para a preservação e difusão do patrimônio cultural da cidade, destaca-se o documentário Retratos Fantasmas (2023), dirigido por Kleber Mendonça Filho e ambientado no centro da cidade de Recife. Com a reunião de imagens de arquivo e acervos pessoais, o longa-metragem permite refletir usos e apropriações dos espaços de cinema localizados em regiões centrais. Ao afirmar que “um cinema pode ser um espaço de gentilezas”, com cena na qual estão apresentados dois letreiros de anúncio de filme do cinema São Luiz, posicionados na fachada com os dizeres ‘cuidem-se’ e ‘em breve estaremos juntos’ (1:16min; 2023) em referência a pandemia de Covid-19, o diretor marca a evocação do cinema-lugar como acontecimento vivo no corpo social da cidade que se materializa para além da imagem, enquanto lugar em movimento,  pois além da memória da cidade estão presentes as histórias das pessoas, com suas práticas de lazer e sociabilidade. 

O Cine Piratininga 

Caracterizado enquanto bairro industrial, o Brás, cenário perfeito para a sétima arte, abrigava trabalhadores da indústria e operários e, segundo as análises de Paula Santoro (2004): 

[...] concentrava atividades cinematográficas, desde produção de files até edifícios de exibição, como teatros, cine-teatros e cinemas geralmente localizados próximos às linhas de bonde, Largo da Concórdia, uma importante centralidade do bairro. Como se pode perceber pela Tabela X – Cinemas no Brás, Belém, Pari, Mooca, após 1935, cerca de 14 cinemas serão abertos até 1960. Esses cinemas são salas enormes, com uma média anual de espectadores das maiores da cidade, perdendo apenas para as salas da Cinelândia. Sua primeira e importante centralidade era o Largo da Concórdia, mas outros pontos que já abrigava o Cine Mafalda, o Cine Olympia (década de 20), o Brás Polytheama (1926), e o Oberdam (1927). Mesmo com o incidente no Cine Oberdam em 1938, uma série de novas inaugurações irão ocorrer na década de 30, 40 e 50. Essas novas salas distanciam-se do Largo da Concórdia, localizando-se ao longo da avenida Rangel Pestana principalmente próximos ao Largo da Igreja Matriz. É o caso por exemplo dos cinemas Piratininga (1943), Brás (1935) ou ao longo da rua da Mooca – como o Roma (1952) e o Santo Antônio (1952) (cinemas praticamente vizinhos, distam 50 metros), o Imperial (1948), o Icara (1953) e o Moderno (1954); ou próximos ao início da avenida Celso Garcia, dentre eles as maiores salas, Universo (1939) e Roxy (1940). Algumas salas pontuam centralidades locais, como o Cine São José (1958) no Largo do Belém, ou mesmo o Cine Glória (1937) na rua do Gasômetro (Santoro, p.169, 2004). 

Neste contexto, o Cine Piratininga está no segundo lugar dentre as maiores salas de cinema até a década de 1960 em São Paulo, perdendo apenas por 64 lugares para seu vizinho, o Cine Universo localizado na Avenida Celso Garcia. Marco histórico e cultural, o cinema rapidamente se estabeleceu como um dos principais pontos de encontro da cidade, favorecido pela proximidade com a linha férrea da estação de trem e oferecendo à população uma programação diversificada em um período em que a experiência cinematográfica era um evento social de grande importância. 

Localizado na Avenida Rangel Pestana, número 1540, o Cine Piratininga reúne características marcantes de acústica, visualidade e circulação de pessoas. Projetado pelo arquiteto paulistano Rino Levi (1901-1965), seus cinemas imprimem características da arquitetura moderna na cidade (Anelli; Guerra; Kon, 2001). A própria iluminação das fachadas e marquise dos cinemas projetados por ele revela também aspectos da sociabilidade em torno do cinema como experiência. Em relações de urbanização da cidade, a vivência cotidiana da edificação tem em sua memória a transformação em meio às características econômicas e sociais presentes no território, o que poderia significar preservação, contextualização, ou mesmo registro de fenômenos que fizeram e fazem parte da história da cidade de São Paulo. A negligência em reconhecer e proteger oficialmente o Cine Piratininga como patrimônio cultural reflete um problema maior na forma como a cidade lida com seus marcos históricos. Apesar de sua evidente importância, locais como o Cine Piratininga muitas vezes são deixados à mercê do tempo e da especulação imobiliária. Essa falta de reconhecimento ameaça a integridade física desses espaços e o valor histórico e afetivo que carregam. 

O complexo do cinema em si era formado por espaços de plateia central, balcão, palco com fosso para orquestra, exibição de filmes e peças teatrais, camarins, bar, salas de espera e sanitários. Sob as análises de Paula Coelho em diálogo com levantamentos arquitetônicos realizados já no período de desativação, o Cine Piratininga era composto por 

[..] um corredor de cerca de 30 metros de profundidade, ritmado por pilares de seção circular e dois pilares elípticos, partia da rua e levava à sala de espera do cinema do térreo. As diferenças de escalas entre esses dois ambientes dava uma certa dramaticidade ao percurso. Para acessar o balcão, duas escadas partiam do corredor de distribuição do térreo e chegavam no nível da sala de espera do balcão. Esse nível contava com um bar e dois banheiros. Duas pequenas escadarias saiam do nível da sala de espera do balcão e chegavam no nível do mesmo. A sala de projeção foi desenhada empregando o uso da parábola acústica, solução empregada para garantir uma boa distribuição do som (COELHO, 2017, p.31). 

Das suas modificações, a relação entre o cinema, a urbanização da cidade e o patrimônio cultural é intrinsecamente interligada e fundamental para a compreensão e preservação da memória coletiva. O Cine Piratininga não apenas refletiu as transformações sociais e econômicas de São Paulo ao longo das décadas, mas também contribuiu ativamente para o lazer na região, que inclusive apresenta escassez de equipamentos culturais. A preservação de tais espaços, em um contexto urbano em constante mudança, perpassa pela capacidade de reconhecer e valorizar as diferentes dimensões do patrimônio e história da cidade.  

Considerações: Separações tênues entre mundos distintos 

Se o patrimônio nasce antes de ser decretado como tal, o caso dos cinemas de rua na cidade de São Paulo é emblemático. Ativados por motoristas que estacionam seus veículos nos respectivos espaços ou por entusiastas e pesquisadores do campo, as ruínas que abrigam estes cinemas, em sua maioria marcadas pela construção de estacionamentos em diálogo com a especulação imobiliária, se constituem como verdadeiros retratos dos processos de urbanização e gentrificação da cidade. 

Apesar de sua importância, infelizmente, o cinema nunca foi instituído como patrimônio oficial. A tênue separação entre a preservação e o esquecimento é uma linha que este texto explora, refletindo sobre a importância do cinema enquanto acontecimento cultural e social. Através desta discussão, procuramos entender o valor intrínseco de espaços como o Cine Piratininga e a necessidade de salvaguarda dos patrimônios da cidade que também contam sobre sua história, processos de urbanização e geram distintas camadas de pertencimento. 

Da resiliência dos cinemas de rua em São Paulo5, como dito, desde o início do século, o Brás era um local que congregava estes estabelecimentos em fluxo dado pela produção industrial. Numa tentativa de reinventar ruínas, o coletivo Brás de Todo o Mundo, fundado em 2021, passa sempre pelo local em seus roteiros de memória.  

Imagem 01: Grupo de visitantes do projeto Lugares de Memórias do Brás. Fotografia de Rosana Barros, abril de 2024. 

Suplicando pela boa vontade do funcionário do estacionamento para permitir a presença de pessoas sem carros estacionados no local e coleira no cachorro que ocupa o espaço como forma de segurança, as visitas operam em espanto e inquietação sobre a história do local e ausência de qualquer identificação oficial do seus usos, de forma semelhante às placas de memória do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura da cidade de São Paulo. Assim, é relevante pensar quais as memórias subterrâneas (Pollak,1989) intrínsecas neste espaço e como essas relações operam em viés do cinema como espaço de lazer, sendo o que mais impressiona, não é somente a arquitetura como legado da cidade, mas o desprezo pelo qual a história da cidade e do cinema é perpetuada em regiões como o Brás. Em publicação intitulada “Armazém do Brasil – Zona Cerealistas”, as memórias de quem conviveu no bairro do Brás alimentam o que parece ter tido significado em relação ao imaginário do cinema como relembra o então presidente da Associação São Vito: 

[...] Aqui tinha o maior cinema da América do Sul, o Cine Piratininga. Tinha o Cine Universo que nos dias de calor abria o teto e você ficava em um cinema ao ar livre à noite. O Teatro Colombo, que foi incendiado criminalmente em 1966, porque as companhias italianas que vinham pra cá não queriam ir para o Teatro Municipal, queriam se apresentar no Brás. Porque aqui estavam os italianos. Teatro Municipal era pra elite, não era uma coisa popular. Aqui era coisa pros operários, faziam as coisas pra gente trabalhadora, então tinha o Cine Teatro Colombo. E as pessoas sentiam que não precisam ir para lugar nenhum, o Brás era uma cidade independente. A gente que fazia a nossa história aqui. Dizia-se então que era um polo cultural muito grande porque tinha cinemas, tinha teatros, então não precisava ir pra nenhum outro lugar pra comprar alguma coisa porque o Brás sempre tinha tudo. E minha mãe sempre levava a gente no circo, levava a gente pra assistir filmes também, além de tomar um café depois na Confeitaria Guarani, que tinha lá na Rangel Pestana. Aavant-première do Mazzaropi sempre esteve no Cine Piratininga. Passavam aqueles filmes de O Gordo e o Magro, era aquelas coisas que a gente ia, você assistia umas duas vezes ou três no cinema. Aquele cinema enorme, lotado, ia muita gente que sentava até no chão (SESC, 2006 - Relato de Wanderley “Matheus” Rodak, p.51). 

Neste sentido, o Cine Piratininga é um lugar social que abrigou e conserva símbolos da memória. Seja no tempo presente ou nos anos de glorificação do cinema de rua, no tensionamento dos locais de memória como espaços vivos “mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim fazem parte da construção de espaços culturais da recordação muito significativos” (Assman, 2011, p.318). Esta construção de significados é presente, principalmente, quando ao ancorar a arquitetura, a história, a presença e memória dos operários no bairro e a forte influência migrante, torna-se perceptível que a entrada, ainda que seja pela ruína, é um caminho sem volta na construção de outras relações com a cidade.  

 

 

Centro atravessado: mapeamento e indagações sobre os impactos da construção da Ligação Leste-Oeste do Município de São Paulo

Dominique Aires

RESUMO  

O presente trabalho consiste em realizar um mapeamento das modificações geradas pela construção da ligação Leste-Oeste que corta o centro de São Paulo (toda a extensão do Elevado João Goulart, Viaduto Júlio de Mesquita Filho, Viaduto Jaceguai, Viaduto do Glicério, Viaduto Leste-Oeste, Complexo Viário Evaristo Comolatti, até desembocar na Avenida Alcântara Machado). Com base em artigos, jornais, decretos e leis que retratam o desenvolvimento de São Paulo e conceitos de lugar e memória, este estudo aborda intervenções rodoviaristas, consolidação das regiões afetadas e suas transformações com a construção da Ligação. Visa dimensionar, por sobreposições cartográficas, o impacto das demolições e desapropriações, versando e refletindo sobre a “memória coletiva” afetada. Por fim, apresenta um mapeamento que estima a quantidade de demolições para visualizar as áreas mais impactadas pela construção da Ligação Leste-Oeste. 

INTRODUÇÃO 

A Ligação Leste-Oeste surge como resultado de um longo processo de priorização do automóvel em São Paulo. O modelo de grandes avenidas e do automóvel tornou-se central no final do século XIX, visando construir uma cidade para a elite crescente da economia cafeeira. Entretanto, a cidade também recebia trabalhadores instalados próximos às indústrias. Campos (2002) afirma que, ao conter a população operária em espaços específicos, o centro da cidade poderia se dedicar à elite. 

Em 1930, o engenheiro Francisco Prestes Maia desenvolveu o Plano de Avenidas, que apesar de prever a inclusão de modais de transporte público desconfigurou a socioespacialidade da cidade, consolidando o transporte individual. Políticas do Estado Novo e do governo Juscelino Kubitschek incentivaram a indústria automobilística, reafirmando a prioridade do automóvel. Após o golpe militar de 1964, o discurso desenvolvimentista alinhado à suspensão do regime democrático, abriu portas para intervenções de grande impacto no meio urbano (GUILLEN, 2017, p.5), permitindo grandes construções como a Ligação Leste-Oeste. 

Essa obra visava solucionar o congestionamento com vias expressas, atravessando áreas densamente povoadas com variados perfis urbanos e culturais. É crucial refletir sobre como eram esses lugares antes da construção, considerando que o "lugar" é produto de uma construção social cotidiana (Carlos, 1996; Scifoni, 2013). As vias elevadas criaram cisões e vazios que desconfiguraram as dinâmicas dos espaços implantados, provocando uma ruptura irreversível entre passado e presente (D’Alessio, 1993). 

OBJETIVOS 

Este trabalho tem como objetivo destacar e quantificar as edificações afetadas pela obra da Ligação através da sobreposição de mapas, versando sobre perfis e dinâmicas anteriores dos bairros afetados. Pretende-se fazer uma singela contribuição no levantamento de questões a respeito do impacto de obras desse porte no contexto dos bairros em que foram implantadas. 

METODOLOGIA 

O trabalho foi construído a partir da sobreposição das bases shapefile das “obras de arte” (jargão técnico da engenharia para definir estruturas como os viadutos) da Ligação sobre mapas raster VASP CRUZEIRO de 1954, disponíveis no portal Geosampa. Usando o software QGis, foram delimitadas e quantificadas as edificações do mapa VASP que apareceram cortadas pela camada de obras. Edifícios severamente afetados foram destacados em vermelho e parcialmente afetados em rosa. Pequenas edificações, como edículas, foram desenhadas para visualização mas não contabilizadas para evitar duplicatas. 

Artigos, matérias de jornais, decretos e leis municipais ajudaram a elaborar hipóteses e uma linha do tempo da construção, mensurar as edificações afetadas e entender os contextos impactados. 

DESENVOLVIMENTO 

A implantação da ligação Leste-Oeste, discutida há décadas, começou com a lei 4704/55 e se concretizou com a lei 6.061/1962, promulgada por Prestes Maia. Esta seguiu a lógica de dispersão do congestionamento central, dando sequência ao Perímetro de Irradiação. Em 1967, sob o prefeito Faria Lima, foi entregue a parte da Radial Leste próxima à Liberdade. Em 1969, foi feita a ligação da Rua Amaral Gurgel com a Bela Vista, passando sob a Praça Roosevelt. Paulo Maluf continuou o plano, inaugurando o Minhocão e construindo os viadutos Júlio de Mesquita Filho, Jaceguai e seu prolongamento até a Avenida Alcântara Machado, segundo o jornal O Estado de S. Paulo de 23 de setembro de 1969. 

O primeiro trecho estudado abrange o Elevado Presidente João Goulart, construído sobre a Avenida São João até a Rua Helvétia. A oeste, consolidou-se o bairro da Barra Funda, atraído pela estação ferroviária de 1875, com indústrias e habitações operárias, enquanto a leste estava o bairro residencial de Santa Cecília. Segundo Assunção (2016), a avenida São João era um eixo econômico e a principal ligação com a zona oeste, marcada como “cinelândia paulistana” e por prédios residenciais e comerciais. 

[Figura 01- Legenda: Mapa VASP 1954 com sobreposição dos viadutos. Fonte Geosampa com edições da autora.] *

No mapa (Figura 01), a praça Marechal Deodoro e uma antiga garagem de bondes aparecem cortadas para dar lugar a uma alça de acesso ao elevado. Neste trecho, foram contabilizadas 3 edificações diretamente afetadas e 7 indiretamente afetadas, além da praça e 4 pequenas edificações na antiga estação de bondes. 

O próximo segmento (Figura 02) se configura a partir da entrada do elevado Presidente João Goulart, vindo da Av. São João, cortando a quadra entre a Rua Sebastião Pereira e Rua Frederico Steidel, até entrar na Rua Amaral Gurgel. Esse pedaço se insere entre a Santa Cecília e a Vila Buarque, territórios que quase se confundem. 

Na figura 02 são destacadas e contabilizadas 83 edificações. Uma matéria do jornal O Estado de S. Paulo, de 12 de outubro de 1969, menciona que a abertura da quadra gerou desapropriações de cerca de 80 imóveis, sendo apenas um de 8 andares e o restante compostos de 2 andares. A matéria menciona também 8 imóveis desapropriados na esquina da Duque de Caxias com o Largo do Arouche. Neste estudo, essa matéria entra como um balizador, demonstrando que é possível que a metodologia adotada resulte numa estimativa relativamente precisa. 

[Figura 02- Legenda: Mapa VASP 1954 com sobreposição dos viadutos. Fonte Geosampa com edições da autora.] *

Em 1947, foi decretado o alargamento da Rua Amaral Gurgel, finalizado em 1966. A Figura 03 ilustra um impacto intenso, com o alargamento sobrepondo-se a quase todas as edificações do lado ímpar da rua. Considerando que a Av. São João que foi ocupada de acordo com os interesses da classe média, como os cinemas e comércios, a ausência de noticiamento de atividades marcantes para a rua Amaral Gurgel levanta questões sobre como esse lugar era ocupado e como enxergar os lugares a partir de suas dinâmicas mais cotidianas e menos icônicas, que não interessavam ser noticiadas, onde a reprodução da vida (CARLOS, 1996) se dava. O Largo do Arouche, que começa a ser ocupado por comunidades LGBT na mesma década de 1960, pode nos dar um vislumbre do quanto a degradação dos espaços e sua decorrente desvalorização imobiliária contribuem também para que outros perfis marginalizados passem a ocupar esses lugares. 

[Figura 03- Legenda: Mapa VASP 1954 com sobreposição dos viadutos. Fonte Geosampa com edições da autora.] *

Neste recorte, foram contabilizadas 67 edificações diretamente afetadas e 8 indiretamente afetadas. 

O trecho seguinte (Figura 04) vai da Praça Roosevelt à Praça Pérola Byington, na Bela Vista, um bairro histórico de ex-escravizados e imigrantes. A região se consolidou como bairro de pedestres, com cantinas, boates, teatros e um vínculo com a escola de samba Vai-Vai. A Figura 04 mostra a destruição quase completa da quadra da Rua 14 de Julho, onde viveu o sambista Adoniran Barbosa. Neste trecho, foram contabilizadas 204 edificações diretamente afetadas e 7 indiretamente afetadas. 

[Figura 04- Legenda: Mapa VASP 1954 com sobreposição dos viadutos. Fonte Geosampa com edições da autora.] *

A próxima área (Figura 05) vai da Praça Pérola Byington à Avenida Alcântara Machado, passando pelo bairro da Liberdade e atravessando o rio Tamanduateí até a Mooca. A região se desenvolveu inicialmente por meio da instalação do Largo da Forca e do Cemitério dos Aflitos, o que firmou a presença da população preta no local inicialmente. Posteriormente, foi ocupada por populações de origem asiática. A proximidade da Capela e do Sítio Arqueológico dos Aflitos com o trecho da Ligação levantam questões sobre a possibilidade de que artefatos arqueológicos tenham sido descartados durante as obras da Ligação na década de 1960, embate remontado em 2022 quando as obras da Linha Laranja do Metrô se depararam com materiais arqueológicos do Quilombo do Saracura durante suas escavações. A quadra da Praça Almeida Júnior, onde estava o Teatro São Paulo, foi transformada em “área verde” após a demolição do teatro em 1967, destino fatal de muitos remanescentes de quadras atravessadas por elevados. Já os trechos da baixada do Glicério e a leste do rio Tamanduateí foram inicialmente ocupados por cinturões industriais e habitações operárias, desenvolvendo-se além da vista da elite cafeeira no início do século XX. Da Praça Pérola Byington até a Av. Alcântara Machado foram contabilizadas 142 edificações diretamente afetadas e 54 indiretamente afetadas. 

[Figura 05- Legenda: Mapa VASP 1954 com sobreposição dos viadutos. Fonte Geosampa com edições da autora.] *

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Seguindo a metodologia apresentada, foram identificadas 503 edificações diretamente afetadas e 70 parcialmente afetadas pela construção da Ligação, números muito expressivos considerando a alta densidade populacional de bairros como Bela Vista e Glicério. 

O mapa baseia-se em um levantamento de 1954, quase uma década antes da implantação da Ligação. A utilização de uma base cartográfica mais contemporânea às obras poderia contribuir na precisão dos números e na visualização de padrões de ocupação das áreas afetadas. Entretanto, com o fechamento da Emplasa, é importante assinalar a dificuldade de obtenção desse tipo de documento de maneira online.  

A sobreposição de camadas permitiu visualizar claramente os impactos das obras, gerando uma quantificação útil para outros estudos. A análise bidimensional do mapa revela padrões de ocupação que podem sugerir informações interessantes sobre as regiões. Como os padrões repetitivos de casas geminadas sugerem a existência de habitações operárias, por exemplo. Entretanto, seria útil cruzar o mapa com outros documentos (como número de pavimentos, uso das edificações e quantidade de moradores), a fim de trazer tridimensionalidade à análise. Informações subjetivas sobre relações e costumes dos moradores também seriam valiosas, mas não puderam ser levantadas no período deste estudo. 

Por fim, não foi coincidência que a Ligação tenha cortado os lugares que cortou. A obra atravessou bairros populares como Bexiga e Glicério, áreas operárias perto da Mooca e do Brás, e locais de presença negra como a Liberdade. As transformações da cidade com base em interesses hegemônicos falam por si só e demonstram as intenções por trás das mudanças no espaço físico da cidade. 

 

 

Referências 

  • Hotel Central: uma metonímia de uma São Paulo em constante transformação 

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  • Estacione aqui: Cine Piratininga e a luta pelo direito de entrar nem que seja pela ruína 

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