Secretaria Municipal de Cultura
Informativo n.41
Luiz Gama no Acervo do Arquivo Histórico Municipal - AHM
Azilde Andreotti
(colaboração: Lilian Damasceno Marques)
Ciências e letras
Não são para ti:
Pretinho da Costa
Não é gente aqui.
(Luiz Gama, “No álbum”)
No dia 29 de agosto de 1883, por meio de um ofício, o administrador do Cemitério Municipal, atual Cemitério da Consolação, faz uma reclamação à Câmara Municipal sobre a multidão reunida em torno do túmulo de Luiz Gama, no dia 26 daquele mês, causando estragos ao cemitério. Ainda no ofício o administrador pede que o fato não se repita.
Bem, a “procissão cívica” mencionada aconteceu em data a ser lembrada. Afinal, Luiz Gama falecera um ano antes, em 24 de agosto de 1882, e a celebração ocorreu no dia 26, provavelmente por ser um domingo. Esse registro não deixa dúvidas sobre a consagração de Luiz Gama na cidade de São Paulo naquele momento. Quem seriam essas pessoas que se organizaram em procissão para homenageá-lo? Homenagem que demonstra o reconhecimento do seu ativismo, como também sua popularidade no cenário de uma sociedade escravagista.
O jornal O Correio Paulistano do dia 26 de agosto de 1882, à página 2, sobre a morte de Luiz Gama, divulga: “foi numerosa a concorrência de pessoas que acompanharam a pé o féretro, desde a residência da família, na Rua do Braz, até o cemitério municipal”. E ainda informa sobre a distribuição, pela cidade, de um convite pedindo o fechamento do comércio, às 15 horas, em respeito a Luiz Gama. Vários jornais noticiaram a morte, lembrando seus serviços prestados à alforria de escravos e suas ações na propagação de ideias emancipadoras.
Na década de 1880, a cidade de São Paulo tomava novo impulso. Tinha, provavelmente, perto de 50 mil habitantes. O primeiro levantamento censitário, em 1872, constata uma cidade com 31.385 habitantes. O próximo, em 1890, registra 64.934 habitantes, mais de 100% de elevação de taxa de crescimento. (Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento)
Voltando às Atas, ainda sobre a notoriedade de Luiz Gama, em 27 de agosto de 1884, um abaixo-assinado pede que uma rua da cidade leve seu nome:
dado o nome de Luiz Gama. Deferido. (Atas da Câmara, 1884, p. 184)
Atualmente a rua citada pertence ao bairro do Cambuci e começou a ser aberta em 1882, recebendo o nome de Luiz Gama em 1884. (Fonte: AHM - Dicionário de Ruas)
O fato é que grande parte dos registros no AHM são documentos oficiais: requerimentos, ofícios, próprios da burocracia e da organização da área pública. Nesse sentido, o documento em geral nem sempre tem importância em si mesmo, mas ao incorporá-lo a um conjunto de dados, obtêm-se informações muitas vezes fragmentadas, que reunidas conseguem captar a realidade que se quer conhecer. Assim, o documento oficial, que apenas atende a alguma necessidade burocrática e no momento da sua produção não era significativo, pode desvendar aspectos da história. Afinal, nem todos os documentos já “nascem” históricos. Adquirem esse valor ao longo da sua existência. Como exemplo, que importância tem um aglomerado de pessoas em um cemitério causando estragos, como apontado no início deste texto?
Pois juntar peças de uma documentação orienta a pesquisa e isso se vê nas fontes primárias pesquisadas no AHM sobre Luiz Gama. Tanto nas Atas da Câmara Municipal quanto no Acervo Documental, aparecem marcas da trajetória desse personagem do século XIX, por muito tempo esquecido e que tem sido referendado nos últimos anos como protagonista da causa da abolição. São documentos que testemunham aspectos da carreira profissional de Luiz Gama na função administrativa e na do Direito. Fragmentos que reconstroem certo cotidiano da cidade de São Paulo e, apoiados por outras fontes, a atuação de personagens de sua história.
Nesse sentido, a partir de 1856, há ofícios subscritos por Luiz Gama como escrivão da Subdelegacia do Distrito da Sé (Acervo AHM, 1857, v. 176, p.189). Em 1874, a documentação já o menciona como advogado (Acervo AHM, 1874, v. 283, p. 200, 202, 204, 206, 208) e, em 1881, aparecem ofícios em papel azul e acima, à esquerda, a chancela “Luiz Gama, Advogado”.
Assinatura de Luiz Gama como escrivão da subdelegacia do Distrito da Sé
(Fonte: Acervo do AHM, Fundo Câmara, série Papéis Avulsos, 1857, v. 176)
(Fonte: Acervo do AHM, Fundo Câmara, série Papéis Avulsos, 1881, v. 371, p. 8)
A atuação de Luiz Gama na causa abolicionista, nos processos de alforrias, suas ações de liberdade e defesa dos cativos, e mesmo a sua escrita poética não constam nessa documentação pela especificidade de documento produzido pelo poder público no desempenho de suas atividades.
O jornal Correio Paulistano, em inúmeras edições, traz o registro de defesa de réus, como impetrante de habeas corpus, sempre nominado como advogado, sem mesmo ter o título. Título que lhe foi dado tardiamente pela OAB, em 3 de outubro de 2015, 133 anos após a sua morte. Da mesma forma, em janeiro de 2018, a Lei Federal n. 13.629 o nomeia Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil. Um ano antes, em 2017, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco o homenageia com uma sala em seu nome. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, a luta pela abolição, no campo jurídico, foi iniciada por Luiz Gama. (CARVALHO, 2012, p. 121)
Outra fonte de pesquisa do AHM é a Revista do Arquivo Municipal - RAM, criada em 1934. Nesses mais de 80 anos, esse periódico traz inúmeros artigos sobre a população africana, a escravidão e o movimento abolicionista no país. Um índice dos volumes, publicado na Revista n.201, apresenta os sumários do n.1 ao n.200 e índices por autor, por título, por assunto e também da iconografia. Essa Revista está digitalizada junto a outras, compondo um projeto de digitalização de todos os volumes, ao visar facilitar a circulação de informações. (Fonte: AHM – Revista do Arquivo)
São inúmeros os artigos, as teses e livros sobre Luiz Gama, sua biografia, sua poesia, suas ideias e atuação frente a um país escravista. Foi jornalista, poeta, atuou como rábula, por não ter o diploma de advogado, além de ativista reconhecido da causa abolicionista. Alguns dados de sua vida ajudam a identificar a genialidade de um personagem frente a sua origem, a sua condição de ascendência africana, em um cenário brutalizado pelo escravismo.
Sua biografia está registrada em vários estudos, mas de forma resumida, Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador, em 21 de junho de 1830, filho de uma escrava alforriada e de um pai branco. Sobre sua mãe, Luíza Mahin, há muitas especulações, mas estudos indicam sua participação em insurreições de escravos e seu desaparecimento. Luiz Gama dedica um poema a sua mãe1. Ainda criança, foi vendido como escravo pelo pai e nessa condição chegou a São Paulo, onde viveu. E foi nessa cidade que transcorreu sua trajetória, onde alfabetizou-se, fugiu do cativeiro, conseguiu sua liberdade, por ter nascido livre e teve uma breve carreira militar. Autodidata, formou-se fora dos quadros acadêmicos, na área do Direito.
Segundo Santos (2014, p. 23), nas últimas décadas três trabalhos de envergadura lançam novas perspectivas sobre a vida e a obra de Luiz Gama: Azevedo (1999); Oliveira (2004) e Ferreira (2011)2 . Estudos que testemunham a dimensão histórica desse personagem para a causa da população negra.
Considerações Finais
No âmbito das fontes primárias, os Acervos resguardados pelo AHM preservam informações muitas vezes desconhecidas. Personagens ausentes, ignorados, podem ser recuperados frente ao contexto do período que se quer conhecer, levando-se em conta que as perguntas e respostas não se mostram no material pesquisado, mas na exploração de dimensões do passado e na relação com outras fontes.
É desafiador criar e acrescentar mais dados, por meio de alguns documentos, ao que já se conhece, e despertar desdobramentos a partir de recortes, de hiatos. Afinal essa é uma das funções do pesquisador e o AHM tem Acervos significativos para esse fim.
Notas
1Minha Mãe. In Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. P. 75. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000101.pdf
2AZEVEDO, E. Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de S. Paulo. Campinas, Editora da Unicamp, 1999. FERREIRA, Ligia F. Com a palavra Luiz Gama. S. Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2011. OLIVEIRA, Silvio R. dos Santos. Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama. Tese de Doutorado, IEL, Unicamp, 2004.
Referências Bibliográficas
ATAS da Câmara Municipal de São Paulo. 1883 e 1884. Centro de Memória da Câmara
Municipal de São Paulo. http://www.saopaulo.sp.leg.br/memoria/atas-e-anais-da-camara-municipal-2/ acesso 02/08/18 e 06/08/18.
CARVALHO, José Murilo. História do Brasil Nação: 1808-2010 V. 2.A construção nacional 1830-1889. Parte 2. A Vida Política, São Paulo, Fundation Mapfre e Objetiva, 2012.
CORREIO PAULISTANO. 26/08/1882. www.bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ acesso 31/08/2018.
DICIONÁRIO de Ruas. História das Ruas da Cidade de São Paulo. Arquivo Histórico Municipal.
www.dicionarioderuas.prefeitura.sp.gov.br/
GAMA, Luiz. Trovas Burlescas. São Paulo, SESI Editora, 2017.
REVISTA do Arquivo Municipal.(digital) Arquivo Histórico Municipal. www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/arquivo_historico/publicacoes/index.
SANTOS, Eduardo A. Estevão.Luiz Gama, um intelectual diaspórico: intelectualidade, relações étnico-raciais e produção cultural na modernidade paulistana (1830-1882).Tese em Historia Social. PUCSP, 2014.
SECRETARIA MUNICIPAL DE URBANISMO E LICENCIAMENTO. www.smul.prefeitura.sp.gov.br/historico-demografico acesso 22/08/18
Referências Arquivísticas
ACERVO DO AHM. Fundo Câmara, Série: Papéis Avulsos. Volumes: 176, 283, 371, 378.